O Guaíba engolfou um pedaço de Porto Alegre que, nos últimos anos, recebeu inúmeros investimentos empresariais e que, aos poucos, revitalizado, vinha se tornando um importante hub cultural, de inovação e centro boêmio da capital gaúcha: o 4º Distrito.
A área, que abrange os bairros Floresta, Farrapos, Humaitá, Marcílio Dias, Navegantes e São Geraldo, fica localizada entre o Aeroporto Internacional Salgado Filho e o Centro Histórico. Antiga zona industrial por décadas esquecida, é, neste fatídico maio de 2024, um dos epicentros da cheia histórica que atormenta o RS.
Na terça-feira (14), GZH navegou por três horas de bote a remo pela área. São vários quilômetros tomados pela água, prédios com portas arrombadas — ora por saqueadores, ora pela pressão da enchente — e estruturas destruídas. Assim como poucos poderiam imaginar que o 4º Distrito, que entrou em decadência na segunda metade do século 20, se tornaria um pujante polo cervejeiro, de inovação, criatividade e design, hoje, ao se olhar o cenário, fica difícil vislumbrar possibilidades de renascimento.
O Guaíba atingiu toda a Farrapos, a Voluntários da Pátria e ruas adjacentes. Na Travessa São José, onde fica a sede do Instituto Caldeira, um dos acessos ao DC Shopping e a antiga fábrica de tecidos Guahyba, a profundidade chegava, na terça, a 1 metro e 90 centímetros. O belo Centro Cultural Vila Flores estava com todo o andar térreo submerso.
Com o objetivo de estimular a ocupação do 4º Distrito por empresas e moradores, em 2023 o prefeito Sebastião Melo sancionou uma lei que aumentou a zona de incentivos fiscais na região, ampliando áreas que fazem parte do Programa +4D de Regeneração Urbana. A lei estabelece concessão de isenção, por até 15 anos, do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) e do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI). Mas a revitalização é anterior, começou por volta de 2011. Os primeiros bares foram inaugurados em 2015.
A enchente de 2024 põe em xeque o futuro do 4º Distrito. Não só pela incerteza, mas porque o avançar furioso do Guaíba teve, ali, algumas de suas cenas mais emblemáticas. Lá, ficam seis casas de bomba, responsáveis por drenar o excesso de água da cidade de volta para o lago, e quatro comportas do sistema de proteção a cheias. Entre elas, a de número 14, próximo à estação São Pedro do Trensurb. Foi esse portão, no dia 3, que se rompeu, fazendo a água avançar sobre ruas e avenidas. As casas de bomba não deram conta. O 4º Distrito afundou.
Investimento
O vice-prefeito de Porto Alegre, Ricardo Gomes, afirma que a situação do 4º Distrito precisa ser avaliada no contexto de outras áreas alagadas do Estado.
— Julgar a viabilidade econômica do 4º Distrito por esse episódio significaria dizer que temos de abandonar uma franja do Centro Histórico — diz. — Que Eldorado do Sul vai deixar de existir, que Lajeado não pode receber investimento. Não podemos entrar em uma de que não dá para entrar no 4º Distrito porque alagou. Bem, alagaram o Menino Deus, o Centro, o Praia de Belas, a Cidade Baixa e mais 400 municípios — complementa.
O 4º Distrito não é inviável e não ficou inviável
RICARDO GOMES
Vice-prefeito de Porto Alegre
Gomes admite o problema histórico dos alagamentos na região. Diz que a prefeitura busca junto ao Banco Mundial (Bird) e ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) R$ 400 milhões em financiamento para investir no 4º Distrito, boa parte do montante para melhorar drenagem da região e construir uma nova casa de bomba. Sobre a comporta de número 14, afirma que deverá ser reconstruída junto com todo o sistema de controle de cheias.
— O 4º Distrito não é inviável e não ficou inviável — defende.
Na mesma linha, Vicente Perrone, responsável pelo Programa +4D da prefeitura e empresário no 4º Distrito, afirma que Porto Alegre tem, a partir da tragédia, uma “grande oportunidade”:
— De pensar diferente, de quebrar as caixinhas. As secretarias vão ter de ser repensadas, assim como a forma de pensar o poder público e a relação com a iniciativa privada e associações.
Na quarta-feira, enquanto estava na região alagada, Perrone soube de uma iniciativa da comunidade e do empresariado: a Associação de Empresários do 4º Distrito Atingidos pela Enchente, formada por cerca de 700 pessoas que se reuniram em um grupo de WhatsApp para organizar a questão da segurança e da reconstrução da área.
— A gente teve mais de mil barcos sendo utilizados no 4º Distrito. Pessoas 100% orgânicas, 100% voluntárias. A gente chegou em um nível de PPP (parceria público-privada) para salvamento: o barco privado, a gasolina pública, o policial civil e o policial federal no mesmo barco na prática, sem combinar. É uma grande oportunidade de a gente repensar as relações da sociedade. A gente tem de acabar com o estereótipo de que a iniciativa privada é o “malvadão da história”. Eles perderam tudo. É muito pior do que a covid.
Questionado se a prefeitura deveria ter investido em infraestrutura antes de incentivar iniciativas privadas na região, ele afirma:
— Não foi a prefeitura que incentivou o 4º Distrito. Aquilo ali teve uma ordem espontânea empresarial. A gente chegou depois que eles já estavam lá. Falamos: “Não podemos ficar à margem do que está acontecendo via iniciativa privada”.
Empresários prometem "virar o jogo"
Antes da tragédia, cinco grandes empreendimentos do 4º Distrito estavam em fase adiantada, como indutores de desenvolvimento, entre eles a construção do prédio mais alto de Porto Alegre. Em 2022, a prefeitura aprovou o primeiro projeto arquitetônico da região seguindo o novo regime especial de flexibilização dos parâmetros urbanísticos e concessão de benefícios. O projeto está localizado entre as ruas Sete de Abril e Emancipação, no bairro Floresta. Aproveitando a estrutura de um antigo moinho de farinha, prevê a implantação de uma torre de 117 metros de altura.
Eduardo Fonseca, CEO da ABF Development, responsável pelo projeto, reforça o compromisso com a região.
— Permaneceremos no 4º Distrito, acreditamos nele, e estamos ainda mais ainda acreditando nesse momento — diz. — Temos de pensar medidas de curto, médio e longo prazo para mitigar eventuais chuvas, como casas de bombas, obras mais complexas, diques. Essa tragédia vai gerar uma oportunidade.
No 4º Distrito, abandono e promessas sempre se misturaram. A renovação demorou décadas para ocorrer. O empresário afirma não se sentir “traído” pelas águas:
— A gente tem empreendimentos no Menino Deus, e teve água ali. Teve também na Cidade Baixa, Assunção, Tristeza, não foi uma coisa especifica do 4º Distrito, do Centro Histórico. Não dá para pensar em derrocada. Estou pensando em oportunidade. Vamos virar esse jogo.
Temos de viabilizar uma cidade melhor. Fomos omissos por muitas décadas em relação a esse assunto.
PEDRO VALÉRIO
CEO do Instituto Caldeira
Alguns dos principais empreendedores do 4º Distrito consultados pela reportagem reafirmam essa perspectiva: mesmo com a enchente histórica de 2024, pretendem permanecer investindo na região. CEO do Instituto Caldeira, iniciativa que abriga startups de Porto Alegre, Pedro Valério faz uma profunda reflexão sobre o momento dramático que vive aquela região da cidade:
— É um momento que leva a muitas reflexões. Tem o momento de tristeza, de luto. Teve todos os sentimentos. E esse momento é de visão de futuro. Qual é a cidade portadora de futuro que a gente quer reconstruir de alguma maneira e como o Caldeira pode contribuir, que tipo de 4º Distrito a gente pode construir ali, e como proteger.
Valério afirma que não pretende sair dali “de jeito nenhum”:
— O Caldeira vem fazendo uma articulação tanto com atores locais quanto internacionais. O exemplo que eu dou é Amsterdã, faz 750 anos que está abaixo d1água. Ou Veneza, que todo ano alaga, mas sabe conviver com isso, dentro da perspectiva da cidade. O próprio instituto iniciou o trabalho de projetar o futuro, convocando um grupo de especialistas para repensar planos de contingência, de como lidar com uma situação: revisão das comportas, a 14 e a 16, como a gente pensa o sistema de bombas. Então, a gente está fazendo todo um projeto de engenharia nesse sentido para, de fato, ao limpar, ao tirar água, proteger de forma a não acontecer de novo. Temos de viabilizar uma cidade melhor. Fomos omissos por muitas décadas em relação a esse assunto.
O Instituto Caldeira tem como sede as antigas fábricas das Indústrias A.J. Renner, contando com uma área de 22 mil metros quadrados. Mas tem plano de expansão: com investimentos de R$ 120 milhões, pretende ocupar a antiga fábrica de tecidos Guahyba. Com isso, a área para atividades de empresas e instituições passará para 55 mil metros quadrados. Valério afirma que, por ora, o projeto não está comprometido e reforça que está fazendo estudos para proteger áreas de futuras inundações.
Coletividade
Eliane Soares, proprietária da Sou Elevadores Autorais e uma das organizadoras da associação de empresários e moradores do 4º Distrito, está preocupada é com a insegurança na região.
— Roubam energia, arrombam as coisas. Com água já estão agindo dessa forma, imagina depois que não tiver água. Será que o poder público vai dar atenção não só às pessoas físicas, mas a quem faz a economia girar? Nossa dúvida é se teremos o mínimo: segurança, limpeza, energia elétrica, depois que tudo isso se acalmar — questiona a empresária, que afirma ter investido mais de R$ 1 milhão na sede, que estava, até sexta-feira, debaixo d’água.
Antonia Wallig, gestora do Vila Flores, afirma que será necessária muita força coletiva para reerguer o centro cultural, que teve todo o térreo alagado:
— Há 10 anos, viemos sediando reuniões da prefeitura, com a população, para que essa região possa se desenvolver. O essencial nunca foi feito. Por isso, está acontecendo o que está acontecendo. A gente precisa retomar esse olhar para as politica públicas estruturantes. A cultura e a arte acabam sendo catalisadoras disso tudo.
"Zona de risco", diz professor da UFRGS
O professor Fernando Dornelles, do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da UFRGS, reconhece os investimentos feitos pela prefeitura nas casas de bombas de Porto Alegre nos últimos anos. Porém, alerta que a Capital deveria ter prestado mais atenção às comportas.
— Foi coisa simples que falhou, investimentos diminutos, se pensarmos em tudo o que foi investido nas reformas das casas de bomba. Porto Alegre inundou por falta de parafuso e borracha — afirma.
O pesquisador conta que, a cada ano, como parte de uma disciplina na universidade, costuma visitar áreas como o Muro da Mauá.
— No armazém principal, sempre olho aquela comporta e vejo aquela fresta ali. Eu ficava pensando: “Quando o Guaíba começar a subir de verdade, devem ter em algum lugar esse aparato de vedação e vão fixar”. Não aconteceu — diz.
Sobre o 4º Distrito, Dornelles alerta que aquela é uma área aterrada, semelhante à grande parte do Centro Histórico e do Praia de Belas, por exemplo:
— O pessoal esquece que viver dentro de um polder não é uma vida normal, não há uma segurança completa. Esse sistema sempre vai ter risco de não suportar, de uma comporta se romper, de um dique de terra ter alguma patologia geotécnica e colapsar.
Polderes são estruturas hidráulicas artificiais, uma das mais clássicas técnicas de drenagem para controle de enchentes em locais de baixa altitude próximas a rios ou ao mar. O 4º Distrito fica dentro de um polder, área protegida por um sistema composto por diques (muros), reservatórios, dutos e bombas:
— Tudo aquilo ali sofreu um processo de aterramento, está na mesma condição hidrológica e de solos que a região das ilhas. A gente teria os mesmos problemas das ilhas, se não fosse o sistema de proteção. O problema foi que a água começou a entrar na região que, supostamente, deveria estar protegida. Devido aos vazamentos nas comportas e por retorno de água nas casas de bombas, algo que já tinha ocorrido em 2015, quando a região da Rodoviária foi inundada.