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No final da manhã de quinta-feira (9), ainda parcialmente submersa, Porto Alegre testemunhou uma cena que sintetizou o caos vivido ao longo da semana e os problemas apresentados pelo sistema de contenção. No Muro da Mauá, o nível da água estava mais alto do lado de dentro do paredão de concreto, onde fica o centro da maior cidade gaúcha, do que na face voltada para o Guaíba.
Um vídeo difundido pelas redes sociais mostrou uma corrente de líquido barrento escapando da avenida de volta ao manancial por uma das brechas por onde havia ingressado dias antes. Uma série de falhas resultou na transformação da estrutura que deveria manter a Capital a salvo da cheia em um obstáculo que passou a atrasar o escoamento. Falta de manutenção, problemas de projeto e descuido até com um sistema básico de vedação precipitaram uma cadeia de eventos que resultou em um desastre urbano com cenas de pânico e milhares de desalojados. Por isso, os rios Guaíba, Jacuí e Gravataí venceram a batalha contra as defesas metropolitanas mesmo sem atingir a cota de enchente calculada em seis metros.
— O sistema não permitiu que a inundação fosse tão rápida. Funcionou como um sistema de retardo da cheia, não de proteção. O correto seria não ter inundado a cidade — resume o professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Fernando Fan.
O cenário inédito, em que o Guaíba chegou a ficar mais alto na cidade do que sobre seu leito natural, teve como origem o comprometimento de um complexo aparato anticheias que ganhou sua forma definitiva no começo dos anos 1970 com a construção do muro junto aos armazéns. A barreira de 2,6 quilômetros de extensão, projetada com três metros abaixo da terra e outros três metros acima do solo, complementava um conjunto de diques erguidos ao longo de 68 quilômetros na orla e em vias internas nas décadas anteriores. São elevações do terreno que, muitas vezes, nem são percebidas como diques porque servem de sustentação a vias como a Edvaldo Pereira Paiva ou a freeway. Na Mauá, como não era viável implantar uma barreira contínua que impedisse o acesso ao porto, se optou pela cortina de concreto e comportas metálicas.
Falhas de manutenção e a ausência de complementos simples, mas fundamentais acabaram por prejudicar o funcionamento da barreira citadina contra a ofensiva da natureza. Doutor em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental, Fernando Dornelles sustenta que parte da vulnerabilidade se deveu à simples falta de um mecanismo eficiente de vedação. Nada caro ou sofisticado: a fixação de algum material semelhante à borracha no ponto em que as folhas de metal encontram o batente do Muro da Mauá já ajudaria a evitar cenas como aquelas observadas no início da enchente – um jorro de água passando por frestas das comportas, como um exército que fura a linha inimiga.
Nos anos 1980, já havia sido elaborado um projeto para qualificar a segurança do muro com um dispositivo desse tipo. Elaborado pela 15ª diretoria regional do extinto Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS), a planta desenhada em janeiro de 1981 detalhava desde o tipo de parafuso a ser utilizado até o formato da peça emborrachada que deveria ser acoplada à barreira metálica.
— Não sei se jamais foi implementado, ou se foi e depois acabou removido e não substituíram. Não é nada complicado, ainda mais para um município do tamanho de Porto Alegre e sabendo-se do prejuízo que poderia ocorrer se isso não fosse feito — sustenta Dornelles, também professor do IPH.
Segundo Fan, Porto Alegre caiu em razão de uma sucessão de falhas que começou na linha de frente do combate à cheia e chegou até a retaguarda das casas de bomba:
— O sistema não foi capaz de nos proteger porque as falhas acabaram gerando uma espiral de coisas negativas, vãos nas comportas, problemas em casas de bomba, inundações que obrigaram a desligar a energia de outras bombas que poderiam estar ajudando. O resultado foi o que vimos.
Água rompeu comporta e superou dique
A força da água também se revelou mais intensa do que a resistência do sistema preventivo em pontos específicos da Capital, sugerindo falta de manutenção preventiva ou preparação adequada ao longo de muitos anos. A comporta número 14, localizada na Avenida João Antônio Maciel, próximo à Sertório, foi rompida na manhã do dia 3 e facilitou a invasão do Guaíba sobre a Capital sitiada. A linha de defesa foi vencida mesmo quando o nível estava abaixo da cota de 4m76cm alcançados na célebre enchente de 1941 — superada agora pela marca de 5m35cm. Outras duas barreiras, de números 11 e 12, próximas à Ponte do Guaíba, ficaram sob risco iminente de colapso, mas resistiram.
O ataque pelos flancos da metrópole também superou a barreira projetada para manter a cidade seca. Enquanto milhares de litros avançavam sobre as ruas do Centro, no Norte a população também perdia terreno para a cheia. Uma das razões para isso foi o extravasamento do dique no bairro Sarandi, na manhã de sábado (4). Moradores de comunidades como Asa Branca, Minuano, Vila Elizabeth e nova Brasília foram orientados a marchar para longe do front e buscar segurança em alguma retaguarda da cidade, que seguia encolhendo enquanto a coalizão dos rios Guaíba, Jacuí e Gravataí se mantinham avançando.
Segundo Fernando Dornelles, será preciso fazer uma análise topográfica do dique para averiguar se ele se encontra na cota correta ou se houve algum dano nos últimos anos que tenha reduzido o grau de segurança que ele oferece. O fato é que, como a enchente não superou a cota de seis metros para a qual as defesas municipais foram preparadas, a água não deveria ter passado sobre a barreira junto ao Arroio Feijó:
— Precisamos saber se o topo do dique estava no nível correto. Naquele mesmo ponto, anos atrás, o mesmo ponto foi rompido, de propósito, para aliviar uma inundação que ocorria em Alvorada.
Casas de bomba não foram projetadas para resistir à inundação
Última esperança de impedir a perda de territórios importantes da cidade como bairros centrais, das zonas Norte e Sul, o conjunto de 23 casas de bombas pluviais também não foi capaz de compensar a porosidade da barreira de contenção formada pelo Muro da Mauá e pelos diques externos (junto ao Guaíba) e internos (ao lado de arroios). De toda essa rede destinada a jogar água das ruas e avenidas para o Guaíba, somente quatro seguiram funcionando enquanto a enchente superava o nível de 1941 e fazia submergir bairros quase por inteiro.
Em muitos pontos, a energia precisou ser desligada por conta dos alagamentos, em outro havia risco do contato direto dos motores com a água comprometer o equipamento.
Entre as razões para isso, segundo o engenheiro sanitarista e especialista em gestão de projetos do IPH Fernando Magalhães, estão falhas de projeto que deverão ser corrigidas para evitar que a Capital seja novamente subjugada.
— Em relação a falhas de projeto, não foi pensado nesse risco de uma eventual falha de contenção desse nível. O projeto não previu, por exemplo, ter um motor elevado nas casas de bombas, e também não se pensou em trocar esses equipamentos por motores-bomba que trabalham de forma submersa. Contar com bombas capazes de trabalhar nessas condições diminuiria os riscos. Mais do que algo viável de ser feito, é necessário que se pense em fazer isso agora — analisa Magalhães.
O especialista acrescenta que os painéis eletrônicos que controlam essas estruturas também devem ser revistos para não ficar ao alcance de uma eventual cheia na eventualidade de o muro e os diques não conseguirem conter todo o volume despejado pelos rios contribuintes do Guaíba.
Fernando Dornelles lembra ainda que as casas de bomba foram idealizadas para complementar a proteção oferecida pelo Muro da Mauá e pelos diques, e não para compensar o fracasso do aparato de contenção. Ou seja, enquanto a linha externa segura o Guaíba do lado de fora, as bombas expelem o acúmulo de chuva — e não aquela que deságua dos rios próximos — para fora da área protegida.
— As bombas são dimensionadas para bombear uma vazão de chuva de dentro de Porto Alegre, para jogar a água da chuva para o Guaíba. Não é dimensionada para o nível do Guaíba. Nem teria como colocar um equipamento com esse nível de capacidade, nem é essa a lógica do sistema — acrescenta Dornelles, enfatizando que bombas e diques devem se complementar, não uns compensarem as falhas dos outros.
Devido a essa falta de potência para dar conta da pressão exercida pela inundação que varreu boa parte do Estado até chegar à Capital, a água também inverteu o sentido de fluxo e passou a correr pelos dutos desde o Guaíba até os bairros, em vez do contrário.
Fernando Magalhães avalia que, em décadas passadas, era o que se tinha em termos de equipamento, mas melhorias poderiam ser feitas para atenuar os riscos. Apesar dos problemas sofridos, ele acredita que não seria adequado falar em "colapso" do sistema:
— Eu diria que funcionou parcialmente. Me parece importante essa ponderação porque senão a gente vai dizer que poderia tirar o muro. E tirar o muro deixaria a população em um risco ainda maior.
GZH solicitou desde quinta-feira (9) posicionamento do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) relativa às principais questões abordadas na matéria, mas não obteve resposta.