Como em tantas esquinas da longa história dos Jogos Olímpicos modernos, as competições em Paris, em julho de 2024 ocorrerão em meio a um mundo fraturado por questões políticas, guerras e experimentando uma transição de poder no sistema internacional.
Os episódios mais dramáticos dessa Terra em transe são os dois conflitos que colocam em lados opostos titãs da geopolítica: o primeiro deles é a guerra no Leste Europeu, iniciada em 24 de fevereiro de 2022, a partir da invasão pela Rússia do presidente Vladimir Putin do território da Ucrânia.
O conflito, que se arrasta há mais de dois anos, deixou milhares de mortos, provocou a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) a países até então pacíficos, como Suécia e Finlândia, e levou as nações europeias a ampliarem seus gastos com Defesa.
A Europa que sedia os Jogos Olímpicos de 2024 é um continente mais armado e temeroso do que pode ocorrer depois, se Putin ocupar toda a Ucrânia - algo bem provável de ocorrer, se Donald Trump vencer as eleições americanas em novembro. Qual seria o próximo alvo?
A outra grave crise que mexe com os nervos do mundo é o conflito entre Israel e Hamas, iniciado em 7 de outubro do ano passado, com a série de atentados do grupo terrorista, que deixou mais de 1,4 mil mortos israelenses e cerca de 250 sequestrados. A reação de Israel na Faixa de Gaza provocou 30 mil baixas, a maioria civis. Até agora, tentativas de cessar-fogo têm sido frustradas por ódios históricos e interesses divergentes dos atores políticos em campo - leia-se Irã, Arábia Saudita, Egito, Rússia e EUA.
Apesar de essas duas guerras atraírem muita atenção, há outras crises paralelas neste 2024: o conflito civil no Sudão, a ação de piratas na costa da Somália, o quase esquecido Iêmen, risco de confronto entre China e Taiwan e o retorno da instabilidade ao Haiti, o país mais pobre das Américas, que pode colapsar sob o avanço dos grupos criminosos.
Do ponto de vista político, é um ano atípico, sem dúvidas: mais da metade da população adulta no mundo vai às urnas para eleger seus representantes - além do Brasil, que realiza eleições municipais em outubro, a Índia, o país mais populoso do planeta, e os Estados Unidos, democracia mais tradicional do mundo, votam em clima de polarização entre direita e esquerda e seus extremos.
A agenda global ao longo de décadas, talvez séculos, foi dominada por interesses políticos e econômicos. No entanto, novos temas emergem com rapidez em 2024: os debates sobre maior regulamentação de redes sociais, os limites da inteligência artificial (IA) e um compromisso cada vez mais urgente com o combate às mudanças climáticas, cujos efeitos não obedecem fronteiras e são sentidos em todos os quadrantes do globo. Ainda estamos também nos erguendo, com maior ou menor velocidade, dos efeitos econômicos da maior pandemia em um século, a tragédia da covid-19.
Obviamente, não é a primeira vez em que esporte e política se encontram. A própria história dos Jogos Olímpicos é marcada por fricções além das quadras, campos e raias. Quem não lembra do negro Jesse Owens desafiando o ditador Adolf Hitler e sua política de superioridade ariana em pleno Estádio Olímpico de Berlim, em 1936? Ou a invasão da Vila Olímpica em Munique, em 1972, e o sequestro dos atletas israelenses em um dos episódios terroristas mais impressionantes do mundo? Ou, no auge da Guerra Fria, o boicote americano à Olimpíada de Moscou, em 1980, e a resposta soviética, quatro anos depois, em Los Angeles. Ainda quantas décadas de apartheid mantiveram a África do Sul como pária internacional...
O ideal seria que esporte e política não se misturassem. Mas a própria representação dos atletas, ao hastearem as bandeiras de seus países, já é um ato político. E um recorde olímpico, um grito de protesto ou de dor, a superação, por certo, chamam mais atenção da opinião pública internacional do que os demorados discursos nas sessões das Nações Unidas, em Nova York.
O esporte pertence ao âmbito do chamado "soft power", o poder suave. E os governos sabem disso, tanto que, em 2008, Pequim transformou os Jogos em uma vitrine da nova China, potência em ascensão do sistema internacional capaz de rivalizar com os EUA em vários campos. Aliás, no esporte, os chineses conseguiram, naquele ano, desbancar, pela primeira vez desde o fim da Guerra Fria, os americanos da liderança do quadro de medalhas - pelo padrão do Comitê Olímpico Internacional (COI), que privilegia o número de medalhas de ouro.
Seria melhor que política e esporte não se misturassem, mas, como isso é impossível, que ao menos utilizemos esse ano de Olimpíada para tomarmos mais consciência sobre os fatos que, aparentemente distantes, mexem com nossas vidas diárias - do aumento do preço dos combustíveis à escassez de fertilizantes, que eleva os custos dos alimentos na agricultura. E, (por que não?), ao observarmos lado a lado atletas de bandeiras, possamos, por alguns instantes, sonhar com uma paz duradoura. É difícil. Mas tentemos...