Os Jogos Olímpicos sempre estiveram envolvidos com questões políticas. Mesmo que a ideia do evento seja a união dos povos e que o mundo tenha uma trégua de seus conflitos durante as competições, algo que remonta ao passado e as primeiras disputas ocorridas na Grécia.
Jogos de Paris ocorrerão em meio a um mundo de guerras e crises
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De acordo com o professor Jean-Loup Chappelet, da Universidade de Lausanne e especialista em história olímpica, “no final do século XIX, quando o Comitê Olímpico Internacional (COI) foi criado em 1894, havia o desejo de usar os Jogos para promover a paz” e isso, por si só, já demonstra “uma vontade de lhes dar um objetivo político”.
Chappelet acrescentou, em entrevista à AFP em 2021, que “os Jogos sempre foram mais do que uma série de Copas do Mundo”.
E as Olimpíadas de Paris, que começam daqui a quatro meses, deveriam ter essa missão. Claro, a situação atual é complexa e os conflitos na Ucrânia, invadida pela Rússia em fevereiro de 2022, e entre Israel e o Hamas, desde outubro de 2023, exigem negociações que vão além do campo esportivo.
O fato é que a realização da Olimpíada não está ameaçada, mas a harmonia entre os povos está em risco. E não é de hoje. Após a troca de boicotes entre Estados Unidos e Rússia, no começo dos anos 1980 e o fim do bloco de países que funcionavam como "satélite soviético" no final daquela década, o mundo olímpico pareceu navegar em águas mais tranquilas, mesmo que em momento algum o mundo estivesse livre de tensões políticas e de conflitos.
A Guerra Fria, entre apoiadores dos EUA e da ex-URSS, não terminou. E a disputa entre americanos e russos persiste, com desdobramentos que atingem o Movimento Olímpico, sejam por alegações de doping ou questões como as atuais, que estão no campo político.
A quatro meses do início do evento em Paris, GZH mergulhou na história dos Jogos Olímpicos para falar sobre esses fatos, trazendo uma linha do tempo e destacando alguns personagens.
Ameaça na estreia
A primeira edição, em 1896, em Atenas, quase teve boicote. Rivais históricos da França, os alemães ameaçaram não participar do evento por ele ser idealizado por um francês, o Barão Pierre de Coubertin. Os alemães foram à Grécia e levaram para casa 15 medalhas.
O primeiro protesto
A primeira manifestação política de um atleta nos Jogos remonta ao corredor finlandês Hannes Kolehmainen, um dos primeiros grandes nomes da história olímpica. Ao conquistar três medalhas de ouro em Estocolmo-1912, ficou muito frustrado ao ver a bandeira da Rússia ser hasteada e não a da Finlândia, que à época pertencia ao território russo. A Finlândia se tornaria independente em 1917.
— Preferia ter perdido a ver aquela bandeira no alto — disse Kolehmainen.
Primeira Guerra e os excluídos
A Primeira Guerra Mundial, entre julho de 1914 e novembro de 1918, obrigou o cancelamento dos Jogos de 1916, que ocorreriam em Berlim. De sede do evento, a Alemanha passou a excluída da edição de 1920, transferida para a Antuérpia, assim como Áustria, Hungria, Turquia e Bulgária, também derrotadas na Guerra e que não foram convidadas para a disputa.
Interferência antes da Segunda Guerra
Antes de eclodir a Segunda Guerra Mundial (setembro de 1939 a setembro de 1945), os Jogos tiveram sua primeira interferência política. Em 1936, em Berlim, o regime de Adolf Hitler quis fazer da competição um espetáculo de grandes dimensões a serviço da propaganda nazista.
Duas Olimpíadas canceladas
A Segunda Guerra forçou o cancelamento de duas edições dos Jogos. Uma que seria em Tóquio, mas que já tinha sido transferida para Helsinque, na Finlândia, pelo conflito entre Japão e China, que começou ainda em 1937. Mas o conflito na Europa acabou por cancelar os Jogos, como aconteceria quatro anos mais tarde, quando Londres abrigaria o evento.
Fim da Guerra e o recomeço
Foi exatamente na capital britânica que os Jogos voltaram a ser realizados em 1948. Ainda se recuperando da Segunda Guerra, Londres recebeu 59 países. Derrotados no conflito bélico, Alemanha e Japão foram proibidos de participar. Convidada, a União Soviética preferiu enviar uma delegação de observadores e não de atletas.
Guerra Fria e os primeiros boicotes
Os Jogos de 1956 em Melbourne foram o marco do início da Guerra Fria na história dos Jogos. Alguns boicotes aconteceram naquela edição. Egito, Líbano, Camboja e Iraque não foram em protesto à intervenção militar franco-britânica no Canal de Suez (Egito), que contou com a participação israelense. Espanha, Suíça, Liechtenstein e Holanda se recusaram a participar para denunciar a repressão soviética às manifestações contrárias ao regime em Budapeste, na chamada Revolução Húngara. Taiwan (República da China) e China (República Popular) não se entenderam sobre quem deveria representar a China, que terminou sem atletas.
Uma única Alemanha e a Ode à alegria
Dividida entre Ocidental e Oriental, após a Segunda Guerra, a Alemanha competiu sob uma mesma bandeira em Melbourne, Roma-1960 e em Tóquio em 1964. Os atletas usavam uniformes com os cinco anéis olímpicos e os vencedores eram premiados ao som da “Ode à alegria”, de Beethoven, no lugar de um hino nacional.
Movimentos sociais nos Jogos
Um nova matiz chegou aos Jogos da Cidade do México em 1968, os movimentos de direitos civis. Estudantes mexicanos protestaram contra o governo local por serem contra o gasto de milhões de dólares para organizar o evento em um país pobre. Como afirma o professor Chappelet, “os Jogos se tornam uma questão geopolítica tão importante que os governos mordem a isca e veem interesse político em organizá-los”.
O exército vai às ruas para evitar as manifestações e, 10 dias antes da Cerimônia de Abertura, 260 pessoas morrem e mais de 1,2 mil ficam feridas em confronto na praça das Três Culturas. O Movimento Negro americano, Black Power, é representado por atletas que, ao subirem no pódio, usam boinas e luvas negras e erguem os punhos cerrados durante a execução do hino dos EUA. Tommie Smith e John Carlos, ouro e bronze nos 100 metros, foram banidos pelo Comitê Olímpico Americano e tiveram que deixar o México.
Terror muda o nível de segurança
Em 5 de setembro, oito terroristas palestinos invadiram o prédio de Israel na Vila Olímpica nos Jogos de Munique e mataram dois atletas do país, além de tomar outros nove como reféns. Eles exigiam a libertação de 234 palestinos presos em Israel em um avião para a fuga. Já no aeroporto, a polícia local resolveu atacar e a operação terminou com todos os atletas mortos, além de quatro terroristas e um policial. Desde o ataque da denominada Organização Setembro Negro, os níveis de segurança foram alterados nos grandes eventos.
Apartheid e o primeiro grande boicote
A política de segregação racial da África do Sul, o Apartheid, deixou o país banido do Movimento Olímpico a partir de Tóquio em 1964. Doze anos depois, a seleção de rugby da Nova Zelândia fez uma excursão para aquele país, o que foi o estopim para um boicote liderado pelo Congo. O movimento teve a aderência de 29 países, incluindo os que chegaram a participar da Cerimônia de Abertura e até mesmo do primeiro dia de competições, casos das seleções masculinas de basquete e vôlei do Egito, que acabou se retirando dos Jogos, assim como Camarões, Marrocos e Tunísia.
Troca de boicotes e retorno da China
A tensão da Guerra Fria no mundo esportivo teve seu ápice no início dos anos 1980. Os Jogos de Moscou, que se tornariam famosos pelo icônico mascote Misha, o ursinho que chorou na Cerimônia de Encerramento, não contaram com 62 países. Liderados pelos Estados Unidos, eles não compareceram por conta da invasão do Afeganistão pela União Soviética.
Quatro anos depois veio o troco dos soviéticos, que lideraram um boicote a Los Angeles, tendo como alegação a falta de segurança. Outros 14 países aderiram a esse movimento. Por outras razões, Albânia, Líbia, Irã e Burkina Faso também não compareceram. A República Popular da China voltou aos Jogos após ausência de 32 anos, enquanto a República da China competiu com o nome de Taipé Chinês, pela primeira vez.
Guerra das Coreias
Dividida em Sul e Norte desde 1945, a Coreia viveu uma Guerra que durou cerca de três anos. E apesar do término do conflito, em 1953, a tensão e beligerância sempre esteve presente. Tanto que em 1988, quando Seul foi escolhida para sediar os Jogos, o Norte tentou entrar como co-anfitrião, tendo direito a cerimônias paralelas e até mesmo sediar 11 das 23 modalidades. Negociações chegaram a ser feitas, mas sem acordo, e a Coreia do Norte, Cuba, Etiópia e Nicarágua não enviaram suas delegações.
Fim da Guerra Fria e volta da África do Sul
O ano de 1990 ficou marcado pela libertação de Nelson Mandela na África do Sul. Esse fato e o fim do Apartheid permitiram que o país voltasse ao mundo olímpico em Barcelona 1992. Mas os Jogos da Espanha também foram realizados sob a luz de uma Europa em ebulição. A Iugoslávia vivia guerra civil e foi proibida de participar de esportes coletivos. Os demais atletas do país puderam competir, mas sob a bandeira olímpica.
Ainda no lado leste do continente europeu, a União Soviética se dissolveu em 1991. Assim, 12 das 15 repúblicas que formavam o país resolveram competir sob a mesma bandeira. Armênia, Azerbaijão, Bielorrússia, Geórgia, Cazaquistão, Quirguistão, Moldávia, Rússa, Tajiquistão, Turcomenistão, Ucrania e Uzbequistão formaram a chamada Equipe Unificada, enquanto Estônia, Letônia e Lituânia enviaram equipes próprias. Desde Munique 1972, estes foram os primeiros Jogos sem boicote.
Centenário com a Rússia e atentado terrorista
O centenário dos Jogos foi comemorado em Atlanta, muito por força da mais longeva parceira comercial do COI (desde 1928), a Coca Cola, que tem sede nesta cidade do estado americano da Geórgia. Esta edição marcou a volta da Rússia como nação, o que não ocorria desde 1912. Mas um incidente voltou a preocupar o mundo esportivo. Uma explosão no Centennial Olympic Park, freqüentado por atletas e turistas para confraternizações, e localizado a poucos metros da Vila Olímpica, causou a morte de duas pessoas e deixou mais de uma centena de feridos. Um extremista americano chamado Eric Rudolph foi preso anos mais tarde e assumiu a autoria do atentado.
Talibã, Tibete, Covid e Black Lives Matter
O Afeganistão foi proibido de competir em Sydney 2000 por conta do regime do Talibã. A suspensão imposta pelo COI cairia para os Jogos de Atenas em 2004, que tiveram a presença da Sérvia e Montenegro, sucessora da Iugoslávia, mas que em 2008 em Pequim, já competiriam separadas. A competição na China viveu a tensão de manifestações na região do Tibete, que não aceita o domínio chinês.
Até 2020, só as duas grandes guerras haviam sido capazes de suspender os Jogos Olímpicos. Mas Tóquio teve de esperar até 2021 para receber o evento pela pandemia de covid-19, o que também gerou discussões políticas mundo afora por conta de apoio ou não à vacinação.
Mas um outro fator marcou a volta dos Jogos para o Japão. O COI, pela primeira vez, permitiu que atletas se manifestassem politicamente durante o evento. Isso ocorreu devido à forte pressão de atletas que apoiavam movimentos como o ‘Black Lives Matter’, que tomou conta das grandes ligas dos Estados Unidos em 2020, após casos de racismo no país.
A força dos movimentos causou alterações na regra 50.2 da Carta Olímpica, que proibia expressamente qualquer manifestação política, religiosa ou racial nas instalações dos Jogos, sob pretexto de "preservar a neutralidade do esporte e da própria Olimpíada".
Ucrânia, Rússia, Israel e Hamas
A invasão russa à Ucrânia e os ataques do Hamas a Israel são as preocupações do mundo no momento. A Rússia está proibida de participar dos Jogos de Paris e apenas alguns atletas serão admitidos, desde que não tenham apoiado expressamente o governo de Vladimir Putin, o que vem causando uma grande disputa entre o COI e os russos.
Na última semana, o COI fez uma forte nota criticando a Rússia, que promete realizar os Jogos da Amizade, logo depois da Olimpíada. O forte manifesto do COI pede ao mundo esportivo e aos governos convidados por Moscou que "rejeitem qualquer participação e apoio" a este novo evento. O comitê acusa o governo russo de "lançar uma ofensiva diplomática muito intensa", o que "constitui uma violação flagrante da Carta Olímpica e, ao mesmo tempo, uma violação das diversas resoluções da ONU".
Em outro trecho da carta, o COI cita que os atletas poderiam ser "forçados por seus governos a participar dos Jogos da Amizade" e serem "explorados como parte de uma campanha de propaganda política", o que é vedado pela Comissão de Atletas da entidade.
— As decisões do COI são ilegais, injustas e inaceitáveis. Estamos escandalizados com as condições discriminatórias sem precedentes impostas pelo Comitê Olímpico Internacional aos atletas russos. Estas declarações demonstram até que ponto o COI se afasta dos seus princípios declarados e se inclina para o racismo e o neonazismo — afirmou a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores russo, Maria Zakharova.
Parlamentares franceses pediram ao presidente do COI, Thomas Bach, que Israel recebesse o mesmo tratamento dado a Rússia e Belarus, deixando aberta a possibilidade de retirada das sanções contra esses países em caso de um cessar-fogo "duradouro" no conflito na Ucrânia.
Mas a resposta da entidade foi contrária: "Os elementos que levaram o COI a sancionar a Rússia e o Comitê Olímpico Russo (ROC) são específicos, pelos quais a Rússia, e mais recentemente o ROC, desrespeitaram claramente elementos essenciais da Carta Olímpica".