Samuel Johann, coordenador de projeto de Médicos Sem Fronteiras (MSF) na Cisjordânia, está está na região de Jenin e Tulkarem desde janeiro.
A organização internacional realiza trabalhos de ajuda humanitária nos dois Territórios Palestinos, inclusive em Gaza, onde ocorre a guerra entre Israel e Hamas. Formado em Relações Internacionais na Universidade do Vale do Taquari (Univates), em Lajeado, onde nasceu, Samuel apoia com as equipes as operações em dois hospitais importantes, o Khalil Suleiman, em Jenin, e o Thabet, em Tukarem.
Pela MSF, Samuel já trabalhou em missões humanitárias no Afeganistão, Nigéria, Angola, Camarões, Sudão do Sul, Iêmen, entre outros países.
Nesta entrevista à coluna, direto da Cisjordânia, ele conta como a situação vem se deteriorando em razão da violência.
Onde, exatamente, você está na Cisjordânia?
Atualmente, eu estou coordenando um projeto da MSF Bélgica baseado no norte da Cisjordânia. A gente está presente nas províncias de Jenin e Tulkarem, as zonas mais afetadas pelas hostilidades, pelas operações militares. Infelizmente, são os lugares onde têm o maior número de feridos e de mortos.
Você testemunhou um cenário bastante violento nos últimos dias. Por quê?
Esse projeto foi aberto no final de 2022, na província de Jenin, porque já existia uma crise humanitária à época, e ela vem piorando. Segundo a ONU, 2023 foi o ano mais violento da história da Cisjordânia, que também é território ocupado palestino, assim como a Faixa de Gaza. Depois de 7 de outubro, quando aconteceu o ataque do Hamas a Israel, e depois das ações de Israel na Faixa de Gaza, a situação também se deteriorou aqui na Cisjordânia. A ONU contou mais de 400 pessoas mortas na Cisjordânia como resultado direto dessas hostilidades e cerca de 5 mil pessoas feridas, dessas 725 crianças. A maior parte dessas hostilidades acontece, infelizmente, aqui na região norte, onde nós estamos situados. Então, a gente abriu um projeto pra apoiar o hospital público da província de Jenin, que é o hospital Khalil Suleiman.
Como está a situação?
Infelizmente, a gente escuta com muita frequência e até testemunha em primeira mão alguns ataques muito significativos que afetam profissionais de saúde e as instalações de saúde. Durante uma operação militar israelense em Jenin, seis pessoas que estavam nas dependências do hospital, na frente da sala de emergência, que é apoiada pela gente, foram alvejadas por um atirador de elite. Duas dessas pessoas, infelizmente, perderam a vida. As outras quatro foram alvejadas, mas foram tratadas. Quando acontecem essas incursões militares, é muito comum o hospital ser bloqueado. Então, carros blindados bloqueiam o acesso ao hospital, atiradores de elite se colocam ao redor do prédio, ambulâncias não podem passar, então não conseguem trazer os pacientes. Houve um episódio em que uma ambulância foi alvejada, tomou tiro e, infelizmente, o paciente que estava lá dentro acabou perdendo a vida. Outra situação: nossa equipe estava dentro da sala de emergência do hospital, quando um jovem tomou um tiro e perdeu a vida. E até mesmo um episódio onde gás lacrimogênio acabou entrando dentro da sala de emergência, interrompendo os serviços ali. Se você for visitar esse hospital hoje, vai ver que as paredes estão cheias de buracos de bala. Então, é uma zona bastante hostil para os trabalhadores de saúde e também para os pacientes que deveriam ter acesso a um lugar seguro para receber o tratamento. Quando essas incursões militares ocorrem é muito comum que os pacientes nem consigam chegar até o hospital, justamente por esses bloqueios e ataques a ambulâncias, instalações médicas.
Um atirador de elite, um sniper, atingiu pessoas dentro do hospital? Conte mais sobre isso.
Infelizmente não é uma situação isolada. É uma situação inaceitável, que vem se repetindo. A gente está fazendo o que pode. Devido a essa situação e ao fato de que não é seguro para as pessoas se moverem, as ambulâncias não conseguem chegar até os pacientes, ou as ambulâncias depois não chegam até o hospital, ou o hospital em si não é um lugar seguro, a gente está tentando fazer algumas ações para mitigar a mortalidade do jeito que dá. Temos apoiado voluntários paramédicos, que estão situados nos campos de refugiados, que são um alvo muito frequente dessas operações. A gente os treina para que possam fazer primeiros socorros e os equipa com suprimentos básicos para que essas pessoas pelo menos tenham uma chance de conseguir estabilizar os pacientes. Essas pessoas acabam sendo efeito colateral dessas operações. É realmente uma estratégia desesperada, porque a única solução para um problema desses é que as ambulâncias não sejam alvo, não sejam bloqueadas, os pacientes tenham acesso seguro ao hospital, e os hospitais sejam um lugar seguro, para que tanto os profissionais de saúde, quanto os pacientes possam fazer o que tem de ser feito. Isso, infelizmente, não é o que a gente tem observado aqui nessa localidade.
Gaza está mergulhada em uma guerra total, enquanto, na Cisjordânia, ainda existe um sistema de saúde que funciona. O problema é as consequências da ocupação.
Você chegou em janeiro. De lá para cá, você percebe que a situação vem piorando?
Quando cheguei, o contexto já tinha se deteriorado bastante, é uma constante. Eu não diria que há um pico específico. Essas hostilidades acontecem quase que diariamente em diferentes locais da Cisjordânia. É claro que a Cisjordânia não é Gaza. Gaza está mergulhada em uma guerra total, enquanto, na Cisjordânia, ainda existe um sistema de saúde que funciona. O problema é as consequências da ocupação, o que inclui essa violência toda. Estamos aqui para ajudar o sistema de saúde a ter mais resiliência para lidar com a sobrecarga.
Há equipes de Médicos Sem Fronteiras em Gaza?
Sim, temos equipes trabalhando arduamente dentro de Gaza, tanto profissionais internacionais quanto profissionais palestinos, que estão atuando sob circunstâncias extremas.
Vocês conversam com eles?
Não, essa coordenação é feita por Jerusalém. Não tenho contato direto com os colegas em Gaza.
Você falou sobre ataques ao hospital em Jenin. Israel argumenta que centros de saúde são utilizados por grupos armados palestinos. Você tem como dizer que, no hospital em que trabalha, há esse tipo de utilização por parte de grupos terroristas?
Não testemunhamos nenhum evento desse tipo. Não temos nenhuma indicação de que isso possa estar acontecendo dentro do hospital que apoiamos. A gente não faz comentários políticos. Vamos sempre defender a imparcialidade dos locais médicos e a proteção das estruturas de saúde e dos profissionais de saúde. O que nossa equipe tem testemunhado são agressões que vêm de um dos lados do conflito. Não tenho nenhuma indicação sobre se isso está sendo utilizado por outro lado.
Gente armada dentro do hospital, não?
Não. Obviamente que nós, enquanto uma organização médica humanitária, imparcial, independente e neutra, seremos sempre contrários à utilização de um hospital para qualquer fim que não seja promover a saúde e cuidar de quem precisa. Mas, infelizmente, o que a gente tem testemunhado acaba vindo do lado israelense, como parte dos ataques que eles fazem na cidade de Jenin e também em Tulkarem. É claro que o atendimento prioritário é sempre salvar vidas.
Como está a saúde mental dos profissionais e da população em geral?
É uma ferida invisível. A gente percebe uma deterioração clara na saúde mental e emocional das pessoas. Obviamente, aqui não é Gaza. Mas isso também afeta as pessoas aqui. Temos profissionais de saúde mental que atuam também tanto a nível de atendimento mais especializado quanto a nível de diálogos em grupo, dinâmicas de grupo, para ajudar as pessoas daqui a desenvolverem resiliência perante o que está acontecendo. Trabalhamos próximos a muitas organizações de sociedade civil, fazendo sensibilização, capacitação com eles. Trabalhamos com os trabalhadores sociais daqui também, para que também desenvolvam ferramentas para cuidar melhor de si, dos outros e identificar casos que são um pouco mais graves e que, aí sim, precisam de apoio especializado.
Há muitos moradores da Cisjordânia com parentes em Gaza, não?
Quando aconteceu o 7 de outubro, várias pessoas que são de Gaza, que trabalhavam em Israel, e que estavam aqui na Cisjordânia ficaram presas. Elas não têm como voltar. E também é um público que nós atendemos. A maioria dessas pessoas é formada por homens, trabalhadores, acima dos 30, 40 anos. É um público extremamente vulnerável, alguns deles não têm nenhum vínculo aqui, na Cisjordânia, estavam só a trabalho. Algumas dessas pessoas não conseguem se comunicar com as famílias, então não sabem se estão vivas ou mortas em Gaza. Outros sabem que os familiares morreram, outros têm algum contato com os familiares e se sentem impotentes porque não podem voltar para cuidar da sua família. Ou até alguns relatos um pouco mais fortes que recebemos: do tipo "eu gostaria de voltar, nem que fosse pra morrer, mas gostaria de voltar pra Gaza para poder estar nos braços da minha família". Obviamente, também há uma solidariedade muito grande dos palestinos que estão aqui na Cisjordânia, de maneira geral, com o que está acontecendo em Gaza. E até um medo de que aquilo que está acontecendo em Gaza possa começar a acontecer mais cedo ou mais tarde aqui na Cisjordânia também.