Estoura uma guerra no Oriente Médio, o solo se derrete durante um terremoto no Haiti, um ciclone atinge a costa africana ou a catástrofe de fome se abate sobre um país asiático e lá estão eles: vestidos de jaleco branco, correndo no sentido inverso de onde todos fogem – ou tentam fugir – para ajudar a quem não conseguiu sair.
Há 50 anos, os profissionais da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) prestam ajuda médica onde o Estado faliu, onde grupos guerrilheiros travam batalhas em geral desrespeitando mulheres e crianças, onde tempestades e inundações destroem tudo pela frente. Os médicos, enfermeiros e outros profissionais da organização criada em 22 de dezembro de 1971 são muitas vezes os primeiros a chegar a locais onde a humanidade falhou – e onde só restaram dor e sofrimento –, seja pela atuação negligente do Estado, pela ganância de grupos políticos ou pela descomunal força da natureza.
A organização, cujo financiamento advém 96% de doações de indivíduos e da iniciativa privada, conta hoje com 45 mil profissionais de diferentes áreas e nacionalidades atuando em campo ou na retaguarda. Seus homens e mulheres estão em pelo menos 70 países, prestando cuidados de saúde a pessoas afetadas por graves crises humanitárias. Por exemplo: enquanto você lê esse texto, profissionais da MSF se embrenham entre destroços da Guerra da Síria, levam atendimento a campos de refugiados em Bangladesh ou, em meio à maior pandemia em um século, são os únicos profissionais de saúde que algum paciente enxerga pela frente nos mais remotos locais do planeta.
Só ajudar, no entanto, não é suficiente, na visão da organização, que tem entre seus propósitos também chamar atenção para dificuldades enfrentadas pelos pacientes atendidos. O objetivo: sensibilizar o público – e a comunidade internacional – quanto ao sofrimento, dando visibilidade a complexas realidades políticas pelo mundo. Uma das campanhas que vêm ganhando corpo é sobre emergência climática e como ela impacta no surgimento e na transmissão de doenças pela água ou por vetores como mosquitos e no aumento da insegurança alimentar global, causando desnutrição e surgimento de pragas.
A missão da MSF é acima de tudo médica, mas onde a atuação não é suficiente para garantir a sobrevivência dos pacientes a organização fornece alimentos, água, saneamento básico e abrigos. Por isso, nem sempre são apenas médicos ou enfermeiros os escalados pela entidade: no corpo de “expatriados”, como a entidade chama suas equipes no front, há especialistas em logística, motoristas, jornalistas, nutricionistas, psicólogos etc.
A neutralidade possível
O dueto prestar ajuda humanitária em zonas de catástrofe e denunciar as dificuldades das populações, o que em geral resulta em revelar realidades esquecidas pelo mundo, está no cerne da organização desde sua fundação, em 1971 por um grupo de médicos e jornalistas que haviam atuado como voluntários em Biafra, na Nigéria. A guerra separatista nesse antigo Estado nigeriano é conhecida como uma das maiores tragédias humanitárias do mundo com número estimado de mortos entre 500 mil e 3 milhões.
Aquele primeiro grupo socorreu muitas pessoas. Do terreno, seus profissionais levaram para casa não apenas memórias do conflito. Mas a inquietação com as limitações da ajuda humanitária internacional: dificuldades de acesso a locais em guerra e entraves burocráticos que comprometiam o trabalho. Também eles passaram a colocar a mão na massa, fundando a organização. Quatro anos depois, o primeiro grande desafio veio na forma do horror imposto pelo regime do Khmer Vermelho, liderado por Pol Pot, no Camboja. A crise humanitária, de 1969 a 1993, resultou no assassinato de cerca de 8 milhões de cambojanos. A MSF estabeleceu o primeiro programa médico de grande escala durante a crise de refugiados.
Nos anos 1980, as imagens da fome na África motivaram a inscrição de centenas de profissionais dispostos a viver uma vida despojada de bens materiais, mas cheia de prestatividade. A fome na Etiópia levou a MSF a estruturar um grande projeto contra a desnutrição severa.
Embora adote uma posição vocal de denunciar realidades desumanas, a entidade tem como princípio, no palco de atuação, a neutralidade e a independência em relação aos diferentes “atores” envolvidos na crise – governos, exércitos, grupos políticos e organizações extremistas. Nas instalações da MSF, não há seguranças armados. Em zonas de guerra, por vezes, integrantes de diferentes grupos guerrilheiros feridos são atendidos lado a lado, sem distinção. A posição de neutralidade garante aos profissionais confiança e relativa segurança frente a grupos beligerantes e população civil. Essa postura, contudo, não significa omissão. No caos da crise na Etiópia, os profissionais flagraram o desvio de ajuda humanitária por parte do governo. O preço da denúncia foi a expulsão dos médicos do país, o que agravou a fome entre a população.
A independência da entidade também não a livra de ataques. Em 12 de maio de 2020, houve uma ação brutal contra a maternidade da MSF no hospital Dasht-e-Barchi, em Cabul, no Afeganistão. Dezesseis mães foram mortas a tiros. Uma obstetriz da entidade, duas crianças de sete e oito anos e seis outras pessoas presentes no momento da incursão também foram mortas. Nenhum grupo assumiu a autoria do ataque, mas os EUA responsabilizaram os terroristas do Estado Islâmico (EI).
Como seus profissionais atuam junto à população civil, por vezes prédios da organização entram para as estatísticas do que militares costumam tratar, eufemisticamente, como efeito colateral de um bombardeio. Um desses ocorreu em 2015, também no Afeganistão. Um ataque americano ao centro de trauma da MSF em Kunduz fez o maior número de vítimas em atentados a instalações da organização em 50 anos de história em zonas conflagradas: 42 pessoas foram mortas, entre elas 14 profissionais da entidade.
A trajetória da MSF mistura-se com a história da infâmia desse meio século. Seus homens e mulheres atuaram na resposta ao genocídio de Ruanda, em 1994, quando 800 mil ruandeses da etnia tutsi foram assassinados por milicianos hutus. Na ocasião, a organização tomou a decisão sem precedentes de pedir intervenção armada internacional com a justificativa: “Médicos não podem parar um genocídio”. Um ano depois, os profissionais testemunharam o fim da “zona protegida” das Nações Unidas e denunciaram o massacre de 8 mil bósnios e a deportação em massa e os abusos cometidos por tropas sérvias contra outros milhares, no capítulo mais sangrento da Guerra dos Bálcãs, que entrou para a História como Massacre de Srebrenica. O trabalho em conflitos, desastres naturais, epidemias, desnutrição e exclusão de acesso à saúde levou a organização a ser laureada com o Prêmio Nobel da Paz, em 1999. No discurso de recebimento da homenagem, James Orbinski, então presidente do conselho internacional da MSF, dirigiu-se diretamente ao então líder russo, Boris Yeltsin, condenando a violência das tropas do país contra civis na Chechênia.
– O silêncio tem sido, há tempos, confundido com neutralidade, e apresentado como condição necessária para a atuação humanitária. Desde o começo, MSF se estabeleceu em oposição a essa máxima. Não estamos certos de que as palavras podem sempre salvar vidas. Mas sabemos que o silêncio, pode certamente, matar – afirmou.
O valor recebido com o prêmio foi utilizado na estruturação do Fundo para Doenças Negligenciadas, como a doença de chagas, do sono e malária.
Gaúchos no front
O Brasil entrou na rota da MSF primeiro como palco das atuações da organização, antes de se tornar um dos celeiros de profissionais. A primeira ação da entidade internacional no país foi para conter a epidemia de cólera na Amazônia, há 30 anos, em 1991. O trabalho durou uma década e só foi encerrado depois que os povos indígenas atendidos pelo projeto passaram a ter acesso a cuidados básicos de saúde, com a criação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI). Dois anos depois, a organização passou a atuar no atendimento a crianças de rua no Rio de Janeiro. E, enquanto profissionais prestavam ajuda aos refugiados da Guerra dos Bálcãs, no Brasil era iniciado o projeto em Vigário Geral, no Rio de Janeiro, com atendimento de clínica geral, ginecologia, obstetrícia e pediatria, além de serviços de odontologia, psicologia, serviço social, consultas e procedimentos de enfermagem.
Em 2005, a MSF começou a recrutar profissionais no Brasil. Atualmente, no pool de profissionais capacitados para serem chamados a projetos no Exterior, há 200 brasileiros, sendo 14 desses oriundos do Rio Grande do Sul. Um deles é a anestesista Maria Fernanda Detanico, 41 anos. Desde 2010 na organização, a médica que nasceu em Minas Gerais e vive em Porto Alegre desde os três anos já esteve no Haiti, na Líbia, no Iraque, na República Democrática do Congo, no Paquistão e no Sudão do Sul ajudando populações vulneráveis. Entre as histórias marcantes, ela lembra de uma cesariana realizada no Sudão do Sul de uma mulher grávida de gêmeos. Sem a MSF, era muito provável que ela e os bebês tivessem morrido. No Iraque, em meio a vítimas civis, entre elas muitas crianças, o caso de um menino chamado Hosen chamou atenção dos profissionais.
– Ele chegou após um desabamento, estava muito machucado. Logo nos chamou atenção, porque o menino era uma graça, um querido e supertranquilo para tirar pontos e fazer curativos. Virou símbolo do projeto – diz a cirurgiã dos Hospitais Cristo Redentor, na Capital, e no Pronto Socorro de Canoas.
Nem sempre as histórias têm finais felizes.
– Infelizmente, no Haiti uma menina de 13 anos teve uma história muito diferente e foi a óbito. Foi muito ruim. Não tem como não se emocionar. Sempre há uma história por trás, de tudo o que aconteceu – afirma a médica.
Os profissionais chamados para os projetos recebem um salário pelo tempo de trabalho. E nem todos são da área de saúde. Formado em Relações Internacionais, Guillermo Gutiérrez encontrou na ajuda humanitária a possibilidade de auxiliar pessoas. Ganhou o mundo trabalhando na área de logística. Natural de Porto Alegre, ele embarcou no primeiro projeto em 2016. De lá para cá, foram sete locais: Jordânia, Moçambique, Angola, Etiópia, Bangladesh, Guiné-Bissau e no Brasil, no apoio aos refugiados venezuelanos em Roraima.
Em Guiné-Bissau, ele trabalhou em contato direto com o Ministério da Economia para diminuir o tempo de espera para a liberação de medicamentos e equipamentos que desembarcavam no país. Reduziu de um mês para dois dias o tempo de liberação de insumos no porto. A entrega mais rápida no hospital ajudou a reduzir a mortalidade dos pacientes da UTI pediátrica de 90% para 40%.
– O fato de podermos nos ausentar de nossos lares e ir para regiões afetadas ajudar pessoas, para mim, é muito importante. Fiz trabalho voluntário quando era adolescente, fiz Projeto Pescar, fui professor de espanhol. Encontrar a MSF foi um match importante na minha vida – conta ele, que mora hoje em Vancouver (Canadá), com a esposa, enfermeira também da MSF, que conheceu em um dos projetos, na Etiópia.
Infelizmente, as respostas ainda são precárias. O que muda é que hoje se trabalha muito mais em colaboração com agentes locais, como ministérios de Saúde e outras agências. Mas a MSF muitas vezes continua sendo o primeiro ator a chegar, ou o único que já estava naquela região para poder dar uma primeira resposta
ANTONIO FLORES
Médico da MSF
O também gaúcho Antonio Flores, 36 anos, infectologista formado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), fez da ajuda humanitária sua vida profissional. Depois de atuar por vários anos em diferentes países, decidiu se mudar, em julho, com o marido, para a África do Sul, para atuar com suporte para HIV e tuberculose em projetos globais.
– Essa é uma das características da MSF: há o trabalho de ponta, a resposta de emergência. Mas também uma outra parte que normalmente não é vista, que é esse suporte para projetos para que as coisas possam acontecer: suporte técnico, estratégico – afirma.
O médico trabalhou em Malawi, Moçambique, Sudão do Sul, Sudão, Nigéria e em projetos no Brasil, como a crise migratória em Roraima e resposta à covid-19 no Amazonas.
A passagem dos 50 anos da entidade não é uma data para se comemorar, segundo os profissionais. Afinal, só estariam fetsejando se a organização não fosse mais necessária.
– Infelizmente, essa não é uma realidade – diz Maria Fernanda. – Me deixa feliz poder fazer parte, é uma gratificação pessoal, mesmo que não fosse para existir no mundo real.
Flores lembra que, quando a MSF surgiu, durante o processo de descolonização da África, com muitas guerras, os sistemas de saúde mal existiam no continente. Hoje, ele percebe estruturas mais organizadas, embora muitas vezes ainda incapazes de respostas rápidas a tragédias.
– E esse é o motivo de a MSF ainda existir. Infelizmente, as respostas ainda são precárias. O que muda é que hoje se trabalha muito mais em colaboração com agentes locais, como ministérios de Saúde e outras agências. Mas a MSF muitas vezes continua sendo o primeiro ator a chegar, ou o único que já estava naquela região para poder dar uma primeira resposta – avalia.