Há 11 anos, um dos grupos terroristas mais sanguinários da atualidade, o Boko Haram, tenta implantar um estado islâmico no norte da Nigéria.
Começou em 2009 e continuou realizando ataques mortais, devastando vilarejos, matando e mutilando pessoas, bombardeando e incendiando igrejas e outros lugares públicos. Uma de suas especialidades macabras é sequestrar mulheres e meninas, forçadas a se converter ao Islã.
Maiduguri é a capital do Estado de Borno, epicentro do conflito. Nesse período a cidade foi assediada constantemente pelo Boko Haram. Apesar dos ataques, nunca caiu nas mãos dos terroristas.
É para lá que o médico gaúcho Alexandre Bublitz, 33 anos, viajou, no ano passado, para uma missão de salvar vítimas da guerra, em especial crianças. Natural de Santa Cruz do Sul, o pediatra formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) deixou por seis meses o trabalho nas unidades de pronto atendimento da prefeitura de Porto Alegre em regiões como a Cruzeiro, Bom Jesus e Lomba do Pinheiro para ajudar as famílias da periferia de Maiduguri pela organização Médicos Sem Fronteiras (MSF).
Nesses 11 anos de conflito, mais de 20 mil pessoas morreram. Cerca de 2 milhões foram deslocadas e inúmeras foram vítimas de sequestros. Centenas de famílias foram forçadas a abandonar os meios de subsistência para procurar abrigo em Maiduguri, onde vivem em acampamentos. A seguir, Alexandre conta sua história à coluna.
O desejo de ajudar
Minha ideia de participar da MSF era antiga, desde a residência, ainda no processo de formação. Sempre trabalhei com o SUS (Sistema Único de Saúde), como médico. Sempre tive o ideal de entender a saúde não como mercadoria, mas como direito. Isso sempre foi uma coisa importante para mim. MSF acaba casando com meus princípios, de poder ajudar e transformar meu trabalho em uma coisa significativa. Fui atrás de informações no final da residência. Entre 2016 e 2017, vi que precisava de bom inglês, algum conhecimento de francês. Comecei a estudar e, quando me senti mais seguro, mandei o currículo. O processo de seleção é bem longo, rígido. Quando veio o convite para a missão na Nigéria, aceitei na hora. Eles me mandam um e-mail explicando a missão, as atribuições, e os riscos do local. Era uma zona de conflito, sujeito a sequestro, a ataques, eu sabia que ia ouvir sons de tiros de metralhadoras, de bombas. Mas também sabia que MSF tinha uma organização boa em termos de segurança naquela área. MSF estabelece níveis de segurança diferentes para as missões. No meu caso, estava em uma zona de conflito. Mas eu sabia onde estava me colocando.
Maiduguri, a cidade estratégica
Eu estava em uma cidade grande, Maiduguri, capital do Estado de Borno. É uma região quase desértica. Originalmente, tinha 1,5 milhão de habitantes. Os conflitos começaram há mais de 10 anos, muitas pessoas acabaram saindo de casa, ficaram no meio do fogo cruzado ou eram atacadas, e se deslocaram internamente até Maiduguri, que, hoje, se encontra sob tutela do governo. Sofre ataques, é um local estratégico. Com os deslocados internos que chegaram, a população da cidade passou para 3 milhões de habitantes.
Segurança sem armas
MSF faz todo o seu trabalho de segurança sem armas. Nem as pessoas que recebem atendimento podem trazer suas armas. Funciona muito bem, utilizando-se de inteligência e diplomacia com os grupos armados. Apesar de estar em zona de conflito, sempre me senti muito seguro.
O trabalho no hospital
Trabalhei em um hospital pediátrico de atendimento a crianças com desnutrição infantil severa. A gente recebia pacientes com dois meses até 10, 12 anos. A maioria tinha menos de dois anos. Chegavam com quadro de desnutrição importante: ossinhos proeminentes, face caveiresca, com olhos fundos e pele seca. O hospital era bem organizado, apesar de ser feito de lona. Sem ar-condicionado. A gente conseguia fazer muito pouco exame. A temperatura chegava a 45ºC. Era um hospital de cem leitos e uma parte ambulatorial, que atendia pacientes não internados. Os que internavam eram os mais graves. A gente tinha sempre um médico fixo no ambulatório. Éramos 12 médicos. Funcionava 24 horas. Eu era o pediatra responsável. Por mim, passavam os casos mais complicados, que ficavam na UTI.
O desafio
Nessa região não tem sistema de saúde pública, saneamento. Só é atendido quem tem dinheiro. Se tu tens, vai ao hospital e é atendido de forma particular. Se não tens, acabas morrendo. Sem saneamento e coleta de lixo, agravam-se as doenças. No período de chuva, as águas causam alagamento. Há transmissão de doenças, cólera. Há muita prevalência de mosquito, que carrega malária. Atendi muitos casos de malária. O quadro de vacinação é muito baixo. Quando cheguei, estava terminando uma epidemia de sarampo. É uma região em que falta muita coisa. Os deslocados chegam a Maiduguri sem emprego, sem moradia, sem acesso à educação e à saúde. As pessoas acabam vindo em famílias inteiras, às vezes uma aldeia inteira se desloca em grupo, a pé, caminhando longas distâncias. Isso gera muito adoecimento, problema de fome. As crianças chegam muito fracas, às vezes vêm com desnutrição moderada, pegam outra doença, uma infecção respiratória, um quadro de infecção intestinal com diarreia e acabam piorando e entrando em situação de desnutrição severa. São esses pacientes que a gente acaba atendendo e tentando ajudar.
A rotina
O meu alojamento ficava dentro da cidade. O hospital fica em área mais periférica, perto da população. Por causa da situação de conflito, eu não tinha liberdade de movimento. Minha vida era alojamento-hospital-alojamento. Em média, chegava ao hospital às 7h e ficava até as 18h. Quando saía, ficava no alojamento, não podia sair para passear. O trabalho consome bastante. As pessoas que estão trabalhando na MSF têm uma paixão muito grande pelo trabalho. Foi uma das coisas mais gostosas para mim. Eu via as pessoas se dedicando com vontade. E tu te doas muito. Então, te desgastas. Eu geralmente voltava para o alojamento, ficava um tempo conversando com os colegas de várias partes do mundo e ia dormir cedo.
Os ataques
Maiduguri é um ponto estratégico no conflito, por ser a maior cidade e a capital do Estado. É protegida pelo exército. Quase diariamente existiam ataques, mas sempre na periferia. A gente ouvia helicópteros, sons de bombas, de metralhadora, geralmente mais à noite ou no período da manhã. Quando o sol ainda não havia nascido, a gente costumava ouvir mais. Nunca presenciei ataques porque os conflitos se davam mais na periferia. Apesar de a gente saber que existia o conflito, MSF não se coloca no meio como alvo.
A gente vive hoje em uma sociedade extremamente individualista, em que as pessoas só pensam no eu, na sua família, nos seus interesses, e acabam deixando de ser empáticas com o próximo. A empatia se perdeu.
ALEXANDRE BUBLITZ
Pediatra
A emoção
Uma história que me marcou bastante, na fase inicial, a Hauwa, dois anos. Ela chegou com quadro de desnutrição, bastante fraca, ossos à mostra, olhar fundo. Veio inconsciente, chegou a um ponto em que estava tão doente que não acordava. Passados dois dias, depois que a gente começou a reidratá-la, a colocar antibióticos, iniciar levemente a alimentação, ela acordou. Ainda estava muito fraca, sem força para sustentar o próprio pescoço. Ela ficou conosco bastante tempo. Foi uma paciente pela qual a gente brigou bastante para que sobrevivesse. Eu conversei bastante com a mãe dela, a Falmata, que passou muito tempo na UTI com a gente. A Falmata tem uma história triste, mas bem típica. Morava em um desses vilarejos atacados. Ela fugiu com o marido, três filhos, a irmã e o cunhado. Durante essa fuga, o cunhado foi assassinado. Quando chegaram a Maiduguri, encontraram dificuldades para morar lá. A irmã dela, que tinha três filhos, ficou doente e morreu. Falmata tinha perdido três filhos e decidiu cuidar dos filhos da irmã. Só que o marido da Falmata era contra porque eles estavam passando por dificuldades. Ela acabou se separando do marido para poder ficar com as crianças. Virou mãe solteira cuidando de seis crianças sozinhas nessa região de conflito. Trabalhava fazendo comida e a vendendo para outras famílias. É uma mulher muito forte, tinha 30 anos, já era considerada mais velha para a sociedade, com expectativa de vida 54 anos.
O aprendizado
Fui sabendo o que ia encontrar. Mas é diferente quando se chega lá. A gente vai munido de princípios, às vezes preconceitos que a gente acaba quebrando, enxergando realidades e formas diferentes de as pessoas viverem. Falo de princípios de religião, de entender a sociedade, de organizações sociais diferentes. Isso me abriu muito a cabeça. Volto mais flexível. Consigo compreender um pouco mais as diferenças, ser menos julgador. Ainda tenho muita força e vontade de seguir lutando e seguir mudando. A gente vive hoje em uma sociedade extremamente individualista, em que as pessoas só pensam no eu, na sua família, nos seus interesses, e acabam deixando de ser empáticas com o próximo. A empatia se perdeu. A gente parou de enxergar o outro e sentir as dores do outro. Acho que essa é uma das missões mais bonitas que tem o MSF.
Saiba mais sobre a organização
Criada em 1971, na França, Médicos Sem Fronteiras (MSF) é uma organização humanitária internacional que leva cuidados de saúde a pessoas afetadas por graves crises humanitárias. Está presente em 70 países, a maioria em situação de guerra, como a Nigéria, a Síria e Bangladesh. A entidade recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1999.
Só em 2018, foram 2 milhões de tratamento de malária, e 74 mil crianças tratadas com desnutrição. Foram feitas mais de 400 mil consultas de saúde mental, e 1,5 milhão de pessoas foram vacinadas contra o sarampo. Mais de 3 mil refugiados foram resgatados de alto-mar.
Como ajudar
A organização não aceita dinheiro de governos ou de outras fontes envolvidas em conflitos nos locais onde estão trabalhando. Cerca de 96% dos recursos são provenientes de doações de cidadãos comuns. Saiba aqui como ajudar.