Nesta terça-feira (14), a tragédia provocada pelo terremoto de 4,9 graus na escala Richter que atingiu o Haiti completa um mês. O desastre, que deixou mais de 2 mil mortos, junta-se a outras catástrofes que, nos últimos anos, testam a resiliência dos haitianos, abalados pela pobreza endêmica, instabilidade política e sucessivos fenômenos naturais, como furações, inundações e outros tremores de terra.
A médica Maria Fernanda Oliva Detanico, 40 anos, interrompeu as férias para ajudar as vítimas haitianas. Natural de Minas Gerais, mas radicada em Porto Alegre desde os três anos, a profissional foi escalada pela organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) para atuar no Hospital Imaculada Conceição, em Les Cayes, com cuidados cirúrgicos e pós-operatórios a mais de 90 pacientes. Esta foi a terceira vez que Maria Fernanda esteve no Haiti. Ela já havia trabalhado na organização em 2010, logo após o terremoto daquele ano, e em 2011. A médica é cirurgiã dos Hospitais Cristo Redentor, na Capital, e no Pronto Socorro de Canoas. Por MSF, já trabalhou em apoio a civis em outras zonas de catástrofes e guerras, como no Paquistão, Sudão do Sul, Líbia, República Centro-africana e Iraque. À coluna, ela conta a experiência diante da mais recente tragédia haitiana.
A senhora embarcou às pressas após o terremoto do último dia 15 de agosto. Como foi?
Já sou ligada à organização desde 2010. Foi minha terceira vez no Haiti. Eu estava em férias. Fiquei sabendo do terremoto pela imprensa, e em seguida veio um e-mail (da MSF), solicitando quem poderia ir. Era uma missão de urgência em função de catástrofe. Não tinha como prever. Pensei: "Vamos embora, vamos lá!". Foi só o tempo de organizar um pouco a ida, de como eu ia me deslocar até lá, porque em função da covid-19, é um pouco mais complicado.
Que diferenças a senhora percebeu agora que o país está bastante instável politicamente em relação às duas experiências anteriores?
Com relação à instabilidade, a gente sabe o que ocorreu com o presidente (Jovenel Moïse foi assassinado por um comando dentro de casa em 7 de julho), mas não fiquei tempo suficiente para dizer alguma coisa sobre isso. A diferença em relação a 2010, com relação ao terremoto, diz respeito à região. Em 2010, foi em Porto Príncipe, a capital, que tem uma densidade demográfica maior, mais morros, conformação geográfica diferente. Foi muito pior naquela vez. Desta vez, o terremoto ocorreu na região sul da ilha, que tem uma situação demográfica diferente. Houve destruição, mortes, mas não se chegou aos números de 2010 (as estimativas falam em 200 mil mortos naquela ocasião). Pelo que a gente tem informação da defesa civil haitiana, dessa vez foram 2 mil mortos. Foi menor, mas houve destruição, principalmente das rodovias, o que dificulta o acesso das pessoas aos serviços de saúde. Fica bem mais complicado. Os próprios serviços de saúde tinham uma capacidade menor, para atender os problemas daquela população (de Les Cayes). De repente, vem essa catástrofe que aumenta em três, quatro vezes, o número de doentes dentro de um hospital. Não tem como. Falta material, até estrutura física, para dar suporte a todos esses pacientes internados. E esse foi o objetivo do projeto. No início houve a doação de materiais médicos, 80 toneladas (gaze, soro, material para curativos). Foi estabelecido o projeto junto com o hospital do Ministério da Saúde haitiano para dar suporte às vítimas.
o objetivo era a segunda onda: tratar ferimentos que não cicatrizaram, que precisam de limpeza, que estão infectados e que podem trazer complicações, com prejuízo a médio e longo prazos muito grandes para os pacientes
Que tipo de cuidados médicos a senhora prestou?
Foram cuidados de pré e pós-operatório. Já havia se passado quase uma semana do terremoto quando cheguei lá. Então, o objetivo era a segunda onda: tratar ferimentos que não cicatrizaram, que precisam de limpeza, que estão infectados e que podem trazer complicações, com prejuízo a médio e longo prazos muito grandes para os pacientes. Podem ocorrer desde amputações até infecções que, às vezes, a gente não consegue controlar e que levam à morte. Esse cuidado diante de uma segunda onda virou o foco do trabalho.
Qual era o cenário?
Fraturas que não foram tratadas adequadamente no primeiro momento. Essas pessoas às vezes não chegam no primeiro dia depois do terremoto. Chegam cinco, seis, sete, 10 dias depois. São fraturas que não estão corretamente imobilizadas, ou que têm ferimentos junto na pele, que precisam de uma limpeza mais profunda. Isso ocorre em bloco cirúrgico, com anestesia. Todo esse cuidado é o objetivo hoje da MSF nesse projeto de urgência e emergência para tentar evitar o dano secundário, as infecções prolongadas, morte, amputações e promover a reabilitação desses pacientes. Isso é algo extremamente importante: como vai ser a reabilitação em 30, 40 dias, dois meses, seis meses.
Onde a senhora ficou?
Fiquei em Les Cayes, que é departamento do Sul. As províncias do sul da ilha foram as mais afetadas. No primeiro momento, até por uma questão de segurança, a gente não fica em casa com teto, mas em uma área em barracas na parte externa da casa, porque as placas tectônicas estavam se ajeitando. Havia muitos tremores secundários. Ficamos a 10, 15 minutos do hospital.
A gente vê o Haiti passar por tragédias constantes: terremotos, furacões, pobreza extrema, subdesenvolvimento endêmico. É possível comparar a situação social com a de 10 anos atrás?
Como fui em 2010, quando a gente chegava ao aeroporto, sobrevoando Porto Príncipe, era aquela visão de cima: barraca, barraca, barraca.... por todos os lados. Era uma visão complicada. Em 2011, infelizmente, quando cheguei de avião tive a mesma sensação. Nossa, tinha se passado um ano e meio, e pouca coisa tinha mudado. Mas, desta vez, a visão de cima foi um pouco melhor. Pelo menos essa sensação visual de chegada de avião foi um pouco melhor.