Verônica Erthal nasceu em Vitória da Conquista, na Bahia, e veio morar no Rio Grande do Sul aos quatro anos. Considera-se uma baiana que toma chimarrão e tem sotaque gaúcho. Formada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), desde 2017 ela atua na organização humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF). Já trabalhou em várias missões em zonas de desastre, crises de HIV e guerras na República Democrática do Congo, nos efeitos do ciclone em Moçambique, e na crise da covid-19 em Manaus.
Em setembro deste ano, a tragédia se abateu sobre a região onde mora, o Vale do Taquari. Ela teve de deixar sua residência em Lajeado quando a água do rio começou a subir. Percebeu que, quando a tragédia bate a sua casa, obedecer aos protocolos de segurança aos quais aprendeu, se torna algo mais complexo.
Apesar da tensão, Verônica, 39 anos, passou imediatamente a apoiar as comunidades atingidas usando sua experiência com gestão hospitalar. Ela agora coordena o projeto de emergência da organização no Estado, com foco em saúde mental dos atingidos pela enchente.
- Mas nunca tinha imaginado que trabalharia com MSF na minha região - diz.
Verônica contou à coluna detalhes do trabalho.
Como foi para você, que já trabalhou em desastres naturais, viver uma tragédia ambiental no seu município?
Além de ser moradora, também fui atingida de certa forma. Fui acordada na madrugada do dia 4 para 5 com os vizinhos dizendo para a gente retirar os carros da garagem porque estava vindo água. Era uma região que nunca havia alagado. Achei aquilo muito bizarro. Como pessoa que já trabalhei em desastres, me dei conta do quanto eu não estava preparada naquele momento. Fiz o que foi solicitado, mas confesso que, apesar de em MSF termos muitos protocolos de segurança, eles não existiam dentro da minha casa. Meu prédio ficou sem água e luz, precisei ir para casa dos meus pais. Levei horas até assimilar que isso estava acontecendo aqui. Minha atitude inicial foi ir ao encontro das operações no Parque do Imigrante.
Você foi para o parque já com a intenção de ajudar as populações atingidas?
Isso. Quando cheguei lá, já tinha entendido que a dimensão era muito maior do que seríamos capazes de responder, do ponto de vista da cidade, enquanto cidadã. Comecei a enxergar o que todo mundo estava fazendo. Sabia o que ainda precisava ser feito. Sim. Então, a primeira coisa que fiz foi ajudar a identificar quantas pessoas estavam nos abrigos, porque não tínhamos comunicação. Propus a ir em todos os abrigos, fotografar as listas de pessoas registradas para a gente ter pelo menos um quantitativo do tamanho do cenário. Foi um trabalho voluntário que fiz. Quando a gente conseguiu isso, com uma noção mais concreta dos dados, acionamos MSF. Falo nós porque tem o Samuel Johann, que também é morador da cidade, que estava comigo também, e que trabalha com o MSF. Pela experiência em desastre, pelo que a gente já viu, dissemos: "Precisamos chamar MSF". A gente entendeu que um colapso estava estava sendo identificado, havia um colapso nos sistemas.
Como foi feita essa comunicação?
Pela nossa experiência, contatamos diretamente nossa liderança na América Latina. Devido ao fato de já termos já trabalhado em desastres, isso nos deu certa confiança. Fizemos uma reunião na quarta-feira à noite pra alinharmos os pontos. Na sexta-feira, começaram a vir outras pessoas ajudar a mapear, definir que projeto conseguiríamos apoiar e de que forma.
Por que entenderam que poderiam ajudar em saúde mental?
A primeira situação que identificamos era o esgotamento das equipes que estavam cuidando dos abrigos. Essas equipes precisavam descansar, e a gente conseguiria ajudá-las. Conseguimos mobilizar a equipe para vir de Porto Alegre, que já trabalham com MSF, tem vínculos com a organização. Eles vieram para ajudar dentro dos abrigos, nas escalas, junto com as prefeituras. Optamos pelas cidades maiores, que tinham mais quantidade de abrigados: Lajeado, Encantado e Estrela.
Além de medo e insegurança, há o aspecto de que o rio não tem mais as mesmas as árvores. Foram levadas, a vegetação está destruída.
Como foi o trabalho?
Primeiro, a ajuda dentro dos abrigos. Estávamos à disposição do que nos solicissem: distribuição de comida, conversa com as crianças, coisas relativamente simples. As prefeituras precisavam, às vezes, deixar duas pessoas dentro do abrigo. Com a nossa equipe, eles poderiam reduzir também a quantidade de profissionais deles na escala. Com isso, deu tempo para que montássemos e escrevêssemos o projeto e apresentássemos (para a coordenação da MSF). Porque, naquela mesma semana, houve dois outros eventos naturais: o terremoto no Marrocos e a enchente na Líbia. Essas duas tragédias faziam parte do mesmo orçamento que MSF destina para emergências de desastres naturais. Então, tivemos que apresentar esse projeto, que era em saúde mental. Elencamos três prioridades. Primeiro, a saúde do trabalhador, com apoio nos abrigos, estava muito presente o cansaço das equipes, o esgotamento. Isso extrapolou as capacidades locais. Nosso segundo pilar foi o público vulnerável, os migrantes. Havia muitos migrantes dentro dos abrigos. Fizemos uma ação junto com a Organização Internacional de Migrações, Polícia Federal e Brigada Militar para a emissão dos documentos. E a terceira foi direcionada à população de idosos da zona rural. Os idosos urbanos a gente entende que estão sendo, de certa forma, cobertos, mas os que ficam na zona rural são os que a gente precisa dar mais atenção. A gente entende que 80% da população, quando afetada por um desastre, consegue encontrar maneiras de lidar com ele. E essas estratégias que a gente está fazendo são focadas nesses 20% que vão precisar de uma atenção de um profissional mais especializado, talvez até de um psiquiatra, um psicólogo.
Como está a situação agora?
Ainda há muita desinformação por parte das pessoas. Temos uma população que está acostumada com enchentes. Mas existe uma parte que nunca tinha sido atingida. Essas pessoas não sabem a quais equipamentos do sistema recorrer ou têm dúvidas se esse recurso virá. O benefício, o cadastramento que terá de fazer. Nesse momento, a gente ainda precisa fazer uma busca ativa porque no Vale do Taquari a gente tem uma cultura bastante forte de ter o orgulho do trabalho, de "eu consigo dar conta sozinho". E, nesse momento de fragilidade, você depender de um recurso externo também pode ser muito difícil para a saúde mental.
Como você entende que ficará a relação da região com o rio?
Os parques, muitas ruas não foram limpas 100%. Ainda há mau cheiro em razão da enchente. E estar nesses espaços próximos ao rio hoje não é viável. Como moradora da região, posso dizer, era de praxe, aos domingos, fazer um chimarrão e ir para próximo ao rio com as crianças. O rio era um lugar de lazer. Hoje, ele está devastado. Além de medo e insegurança, há o aspecto de que ele não tem mais as mesmas as árvores. Foram levadas, a vegetação está destruída. O mau cheiro traz uma memória ainda muito recente. Vai demorar um pouco para a gente começar a pensar nessa nova relação que precisa ser estabelecida com o rio.