Eu não esperava aquele choro. Não de um padre. João Paulo Schäfner, da Paróquia São José, conversava sobre a destruição provocada pela enxurrada que engolfou Roca Sales. Tinha uma ideia ousada, quase um desafio: que as grandes construtoras da região do Vale do Taquari simplesmente parem com suas obras em outros locais e, por uma ou duas semanas, enviem seus operários para o município para reconstruir casas e estabelecimentos comerciais.
— Não temos mais empresas. Não temos mais bancos. Não temos mais comércio, porque os prédios foram destruídos.
Não se trata só repor mercadoria, limpar edificações e colocar os estabelecimentos para funcionar, dizia.
— Casas foram levadas, há ainda corpos desaparecidos. Esse é meu apelo àqueles que têm poder aquisitivo, engenheiros e construtoras, que possam nos ajudar — explicava.
Feita a sugestão, pelo microfone da Rádio Gaúcha, no programaGaúcha Atualidade, o padre João Paulo, então, passou a falar sobre espiritualidade. Estava apressado, precisava ir a um velório para a extrema unção. Não sabia, aquela altura, sequer se o corpo havia sido entregue à família. Mas iria cumprir seu ofício. Foi quando chorou.
— Estou buscando força não sei aonde. Vou agora dirigir uma palavra a uma família enlutada, que perdeu um ente querido. Mas não sei o que vou dizer. Só sei que preciso sepultar um corpo.
Se um padre, que tem o dom da palavra soprada pelo Espírito Santo, segundo a fé católica, não sabia o que dizer, o que esperar da população de Roca Sales, um dos municípios mais devastados pela fúria das águas do Taquari? De religiosos esperamos uma conexão direta com o Divino, mas padre João Paulo exibia ali, para o Rio Grande ouvir, seu demasiado humano.
Sua igreja, a Paróquia São José, localizada em uma parte mais alta de Roca Sales, foi poupada. Ali em frente, algumas escadarias abaixo, o hospital do município não teve a mesma sorte. Por isso, o templo foi convertido em local para atendimento de saúde. Assim como a pequena igreja de de St. Paul, em Nova York, se tornou refúgio de desesperados durante os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Os bancos foram afastados para os lados e, diante do altar, médicos sentados a pequenas mesas prestavam consultas gratuitas a quem chegava.
Olha, filho, quanta gente veio nos ajudar
MORADORA DE ROCA SALES
Enquanto converso com o padre João Paulo, ouço atrás de mim uma mãe que perdeu a casa e precisou dormir no salão paroquial caminhar com o filho de dois anos no colo. O menino observa, com os olhos estalados, o movimento.
— Olha, filho, quanta gente veio nos ajudar — ela dizia.
Outro menino de uns cinco anos me procurou para explicar a maneira que encontrara para ajudar.
— Estou trabalhando. Faço kits de limpeza — contou, elencando os diferentes conjuntos de produtos: aqueles para bebês, que incluem fraldas, os de crianças maiores e os de adulto.
É assim, no Vale do Taquari desses dias tenebrosos, meninos e meninas amadureceram alguns anos da noite para o dia.
No hospital, onde a lama cobria até quinta-feira (7) macas e equipamentos, a boa notícia era que, graças a um mutirão de funcionários, as salas de emergência, a enfermagem, os banheiros e os corredores estavam, finalmente, limpos. A estrutura estava, de novo, pronta para receber pacientes. Mas faltavam os aparelhos e os móveis. Enquanto exibia, orgulhosa, o trabalho para reerguer o prédio, a enfermeira Tatiana tinha a expectativa de que o hospital seja reaberto na segunda-feira (11):
— Muita gente auxiliou: profissionais, população, Corpo de Bombeiros. Deveria ter umas 200 pessoas ajudando. Era tudo lodo.
Ali perto, na Rua Eliseu Orlandini, quase em frente à prefeitura, Valmir Corsalette, o Pingo, limpava sua loja, na qual o nível da água chegara até o forro, a dois metros e meio do chão. Uma equipe de Nova Hartz ajudava a afastar a lama que tomava piso e produtos. Mari, sua esposa, se encarregava de recuperar memórias. Sentada a uma cadeira, ela retirava fotografias de uma caixa enlameada e as limpava com uma toalha.
— Começamos com uma foto atual. Essa tive sucesso, consegui recuperar — disse, mostrando o casal abraçado às filhas. — Não podemos deixar isso morrer. Depois de tantas perdas, precisamos continuar a construir uma nova história.
Mais de 48 horas depois da enxurrada, Pingo ainda esperava a confirmação da morte do irmão. O último contato fora quando ele estava sobre o telhado de casa, vendo a água subir. Desde então, não tivera mais notícias. Chegou a ir ao necrotério, mas não conseguira acesso a um dos corpos encontrados pelas equipes de resgate.
Da loja de Pingo é possível avistar o caudaloso Taquari, na sexta-feira (8) de volta a seu leito normal. Do mirante, outrora um bonito ponto turístico de Roca Sales hoje coberto pela lama que faz a bota afundar 15 centímetros, é possível ver as margens tomada por vegetação retorcida. São sinais de que o rio avançou com fúria sobre árvores, ruas, casas e vidas. Na sexta-feira, era quase impossível imaginar como tenha subido tanto - e tão rápido.
Por volta das 12h, Roca Sales era bem diferente daquela de quando cheguei, no início da manhã. Policiais civis e militares, Exército, Defesa Civil e voluntários lavavam, com mangueiras, o interior dos prédios e as ruas. Antes, por volta das 6h, o centro do município era como o de uma cidade-fantasma. Não havia a quem entrevistar. Não porque os moradores estivessem dormindo. Mas porque não havia pessoas na região de Roca Sales. Apenas prédios sem portas e janelas e sofás, camas e outros bens pelas calçadas, entre arbustos arrastados pelo rio. Não havia farmácia, não havia mercado, não havia lojas.
— Em Roca Sales, a pessoa pode ter dinheiro, mas não tem banco — disse um homem, um dos poucos a circular pelo ermo do centro.
Como é que tu vai investir sabendo que vai vir de novo? E cada vez é maior?
PEDRO ILHA
Comerciante de Muçum
A natureza igualou pobres e ricos, patrões e empregados, homens de fé, como o padre João Paulo, e ateus. Se a esperança é a última que morre, ela sucumbiu aqui nessa porção do Rio Grande, na qual ouvi, alguns quilômetros acima de Roca Sales, em Muçum, uma frase que soa como uma reflexão. Enquanto retirava o entulho de sua confeitaria, na Avenida Fernando Ferrari, a 200 metros da margem do Taquari, o comerciante Pedro Ilha tinha a expectativa de recuperar o maquinário da loja. Mas o que lhe tirava o sono era outro problema.
— Como é que tu vai investir sabendo que vai vir de novo? Como é que tu vai gastar esse dinheiro, sabendo que vai acontecer de novo? E cada vez é maior? — questionava.