Janaína Figueiredo, repórter especial de O Globo, é uma das jornalistas brasileiras que melhor conhece a Argentina. Ao longo dos últimos 30 anos, ela vive uma vida “binacional”, entre Buenos Aires e o Rio de Janeiro.
Como correspondente na capital argentina, testemunhou os sucessivos terremotos políticos e econômicos, as paixões, como o futebol, Maradona e Messi, e os dramas e tensões que levam os nossos vizinhos a viver, em looping, uma eterna crise. A menos de um mês da eleição presidencial mais disputada das últimas décadas, Janaína lança o livro “Qué Pasa, Argentina? - História, política, manias e paixões dos nossos hermanos”, pela editora Globo Livros.
A obra combina curiosidades da vida argentina, diário de repórter, análise conjuntural e pesquisa histórica. Trata-se de uma leitura fundamental para compreender como o país vizinho está prestes a entregar o poder ao radical Javier Milei, uma incógnita política que promete dolarizar a economia e fechar o Banco Central.
O livro combina a experiência pessoal com o contexto atual e a História. A intenção foi fazer uma radiografia da Argentina?
Eu não queria falar só de política, só de história, só de economia, porque ia ficar um livro muito pesado, porque história, política e economia sempre são difíceis na Argentina. Quis que tivesse espaço também para falar dos hábitos, do cinema, do futebol, da mania dos argentinos por terapia, com histórias, com análise, mas também com números, dando esses aspectos da sociedade. É bom para o brasileiro interessado em Argentina entender o país, mas também conhecer melhor o país, porque o que eu digo no início do livro é que nós, os brasileiros, achamos que falamos espanhol e que conhecemos a Argentina, mas, em grande parte, os brasileiros nem falam espanhol direito e não conhecem o país. São fascinados pelo país, mas conhecem muito pouco sobre a História, sobre a política, sobre o peronismo. Ninguém sabe exatamente quem foi Perón (Juan Domingo Perón). Eu mesma aprendi algumas coisas com esse livro, ou aprofundei conhecimentos: por exemplo, a amizade dele com Vargas (Getúlio Vargas), que faz essa ponte entre os dois países.
Qual a importância da obra nesse momento em que a Argentina volta ao noticiário?
Algo me diz que vai ser assim por um bom tempo. O livro vai ajudar as pessoas a entender um pouco mais como chegamos a Javier Milei. Não é uma coisa que aconteceu da noite para o dia. Ele é consequência de décadas de decadência, de crises. Não surgiu por acaso. Esses fenômenos de extrema direita têm características particulares em cada país, não é a mesma coisa Milei e Jair Bolsonaro, ou Donald Trump, ou Kast (José Antonio Kast, que disputou a presidência) no Chile, ou Vox (partido) na Espanha. Cada um tem os seus aspectos específicos. Quando você entende como chegamos até aqui, fica mais claro porque que tantos argentinos estão dispostos a votar em Milei.
A relação entre brasileiros e argentinos é de certa contradição: admiração por Buenos Aires, mas certa inveja, a rivalidade no futebol, eles têm o Papa… O que você aprendeu sobre essa relação em 30 anos convivendo com argentinos?
É uma relação muito interessante. Os argentinos eles têm essa fama da arrogância, de se sentirem superiores, e houve momentos em que foi difícil para eles se sentirem superiores ao Brasil,. Lembro muito bem da crise de 2001, a famosa crise do helicóptero de Fernando de la Rúa fugindo, o confisco bancário, e aí veio uma onda em 2002 de empresas brasileiras, de Petrobras para baixo, comprando empresas argentinas a preço de banana. Ali foi o momento que os argentinos tiveram de conter esse ego. Eles ainda têm muito presente o fato de que foram um país rico, é difícil para eles aceitar que não são mais. E, nesses momentos, eles têm de reconhecer o tamanho do Brasil, a superioridade do Brasil em muitos aspectos. Os mais realistas reconhecem isso: eles não têm um BNDES, não têm uma Embraer, a Argentina não tem uma voz no mundo como o Brasil tem. A Argentina não tem o peso do Brasil, eles reconhecem isso. Alguns ficam incomodados e ainda tentam competir um pouco, mas, hoje em dia, nesses 30 anos, acho que vi esse processo de reconhecimento por parte dos argentinos de que o Brasil é maior. Muitas vezes eles têm de pedir socorro ao Brasil, e é o que está acontecendo esse ano especificamente, em reuniões em Brasília, horas e horas de Lula conversando com Alberto Fernandes para ver como o Brasil pode ajudar a Argentina. Vi nesses 30 anos uma evolução no sentido da Argentina assumir que o Brasil é maior, mais forte, que o Brasil conquistou uma estabilidade econômica depois do Plano Real que a Argentina nunca conseguiu conquistar. No livro, eu conto o período de Carlos Menem, no qual um peso valia um dólar...
Época do “dame dos”…
Foi uma ilusão e foi duríssimo sair dessa época. Foi trágico, porque criaram uma solução que não era permanente, como foi o Plano Real. Hoje, os argentinos têm uma enorme admiração pelo Brasil, muitos argentinos inclusive estão vindo morar no Brasil. E e do lado do Brasil acho que há uma frustração de ver esse vizinho que não consegue sair da crise, que dá tiros no pé permanentemente. Ouço o tempo todo funcionários brasileiros dizendo que está difícil ajudar a Argentina: “A gente quer, mas é difícil, porque eles mesmos não conseguem encontrar uma solução”. A solução tem de ser dos argentinos. Hoje continua sendo uma relação muito importante para os dois países, estratégica, mas muito desigual.
A sensação é de que a Argentina está sempre em crise. Mas, em seu livro, você mostra que esse atual estado das coisas não é consequência apenas de um episódio ou de um presidente.
Fazendo o livro, cheguei exatamente a essa conclusão: não existe um governo responsável pela crise argentina, sequer uma ditadura. A última foi terrível em todos os sentidos, mas é uma sucessão de erros que começam com o primeiro golpe de Estado do século 20, que foi em 1930, do general Uriburo, do qual Perón participou. É uma informação interessante que aparece no livro, porque Perón é um personagem importante e muito complexo, contraditório. A Argentina vinha em processo de crescimento, de uma economia pujante, de uma onda de migração europeia que ajudou a compor a população no início do século passado: muitos espanhóis e muitos italianos, principalmente. Vinha em um processo muito próspero, era de fato a Europa na América Latina. Naquele golpe de 1930, começam a surgir as incoerências, tanto de governos militares quanto de civis. Começam as decisões equivocadas, não só do ponto de vista político - derrubada de governos democraticamente eleitos e acordos de elites políticas e civis, que deixavam de fora grande parte da sociedade argentina -, mas também econômicas: programas muito erráticos que uma hora iam para um lado, outra hora, para outro. Abria a economia, fechava a economia. A Argentina passa a gastar mais do que tem, Como em qualquer economia familiar, se você vive no vermelho, é claro que isso não vai dar certo. A Argentina começa, já com o Perón, na década de 40, a criar uma espécie de permanente equívoco na hora de resolver as suas crises. A Argentina resolve muito mal as suas crises porque, quando cai o consumo interno, Perón fecha a economia para favorecer as empresas internas, mas aí gasta mais do que tem porque não tem mais os dólares, aí começa a escassez de moeda americana porque o país não tinha como pagar as importações de petróleo. Aí o dólar começa a virar o que é hoje: a grande obsessão nacional. Perón abre de novo (a economia), chama as empresas estrangeiras e, assim, é um permanente déjà vu.
Milei é visto como uma esperança, mas também é um voto de revolta. As pessoas dizem é que ele não foi parte de nenhum governo, que é preciso dar uma chance a ele para ver o que faz.
Quando você se refere ao colapso econômico, afirma que ele deve pior ainda mais. Por que essa leitura pessimista?
Realmente acredito. Seja qual for o resultado da eleição, a situação atual antecipa um futuro governo muito difícil em termos políticos e econômicos. O país está em uma situação dramática em termos fiscais, está gastando, mais uma vez, o que não tem. O candidato do governo, Sérgio Massa, para forçar um segundo turno, está gastando fortunas em bônus extraordinários para servidores, para aposentados, para trabalhadores do setor informal. Isso vai ter ter um custo fiscal para o governo. Ele autoriza as importações, mas não dá dinheiro para os importadores argentinos pagarem os seus fornecedores externos, então está criando uma dívida que em algum momento vai ter que ser paga. Está deixando uma bomba relógio para si próprio, se for eleito, ou para quem ganhar. Sem falar na questão cambial, que não está resolvida. A proposta de dolarização de Milei gera muitas dúvidas, como vai dolarizar um país que não tem dólares? De onde ele vai tirar esses dólares? Os economistas que estão apavorados com essa situação, o que pode vir por aí é uma mega desvalorização do peso e talvez hiperinflação. Já, já estamos com mais de 120% de inflação ao ano, só em agosto foi de 12%. Não vai diminuir nos próximos meses.
Você acha que Milei realmente tem chance de ser eleito?
Não só chances, como altas chances de ser eleito. Ele está em primeiro lugar nas pesquisas para o primeiro turno. Obviamente, as pesquisas a gente olha com muita cautela porque quase todas têm errado, mas é um termômetro. Também vou muito para a rua. Sou uma repórter, como dizia o meu pai (o jornalista Newton Carlos de Figueiredo), que gasta a sola do sapato. Então, vou nas favelas, a todos os bairros, circulo muito, e é notável o apoio que ele tem, principalmente entre os jovens, mas não apenas. Conheço pessoas de classe média alta, profissionais que estão de saco cheio, que não aguentam mais, que acham que têm de ter uma decisão radical porque não dá para continuar votando nos mesmos de sempre, que já tiveram as suas oportunidades e não fizeram nada, não resolveram os problemas. Milei é visto como uma esperança, mas também é um voto de revolta. As pessoas dizem é que ele não foi parte de nenhum governo, que é preciso dar uma chance a ele para ver o que faz. Para Milei, a Argentina está vivendo a tempestade perfeita, cada vez que a situação piora, por exemplo, quando houve saques a supermercados, ele cresceu nas pesquisas. É impressionante. Cada vez que a situação dá uma degringolada, Milei se fortalece, porque ele está dizendo: “Somos a miséria no mundo, isso aqui é um caos, eu sou o único que tem uma solução”. Não sei se as pessoas acreditam mesmo ou se querem acreditar, mas, enfim, estão indo nessa onda.
Os argentinos foram para o tudo ou nada?
Vão para o tudo ou nada. Esse governo de Alberto Fernandes é o pior que a Argentina já teve desde a redemocratização em 1983. É desastroso em todos os sentidos. A pobreza é muito impressionante e isso é fruto já de vários governos, não vou isentar Macri, que também fez um governo muito ruim, mas você votaria no candidato que é ministro da Economia desse desastre? É o que muitas pessoas se perguntam, então acho difícil que Sérgio Massa possa ser eleito. Por isso, ele está desesperado, todo dia anuncia alguma coisa, jogar com o medo: “Vocês vão perder direitos, Milei não vai investir em educação, em saúde”. A resposta dos eleitores de Milei é: “Mas que direitos que eu vou perder se eu já não tenho direito a nada?”.
E acha possível ele leve adiante a promessa de dolarizar a economia, acabar com o Banco Central?
A viabilidade do programa dele é uma pergunta que todos nos fazemos. Vai depender da sua capacidade de articulação política. Ele vem se moderando (o discurso). Milei está trazendo de volta a década de 1990 e opina que o primeiro governo de Menem foi o melhor da história da Argentina. Então, ele está trazendo algumas pessoas vinculadas ao menemismo, Guillermo Francos (representante argentino no Banco Interamericano de Desenvolvimento) é uma dessas pessoas. Ele disse, em entrevista ao La Nacion, à medida que Milei está se aproximando do poder, que está moderando. Achei muito interessante essa frase porque ele vai ter de buscar articulação. No melhor dos casos ele vai ter uma bancada de 30, 35 deputados, hoje são dois. É um enorme crescimento, mas é uma minoria que não faz a justiça sozinha. Acho que vai depender da cintura política, da capacidade dele de entender que esse discurso contra a casta política que penetrou tanto e que tem muito a ver com o sucesso dele como candidato, vai ter de ser suavizado na hora que ele vencer, se ele de fato vencer, porque ele vai precisar negociar e isso vai determinar o futuro do governo dele. Agora se irá dolarizar a economia, fechar o Banco Central, se vai ser radical… Ele já disse que não vai ser de um dia para o outro, já está baixando as expectativas. Ele precisa ter um plano muito sólido. Ele mesmo disse que tem pelo menos cinco propostas de dolarização. Vai ser um quebra-cabeças que ele vai ter que montar com muito cuidado, com bons assessores, e que não vai ser fácil. Os primeiros meses vão ser turbulentos, até que a gente possa, de fato, perceber se isso é viável ou não, é uma grande interrogação.