Não há como não chorar pela Argentina. Os ecos de 2001, quando o país viveu falência social, econômica e política, são muito fortes nesses idos de 2022.
Nos últimos dias, os sinais de repetição da história - não como comédia, mas como tragédia - se fizeram mais fortes. O embate nas entranhas do governo de esquerda, entre o presidente Alberto Fernández e a vice e ex-presidente Cristina Kirchner, aprofundaram a crise econômica que já se anunciava.
Estive duas vezes em Buenos Aires este ano, e a miséria nas ruas e boa parte do comércio com portas fechadas não apenas denunciam o impacto de um dos mais prolongados lockdowns do mundo, na crise da covid-19, como prenunciam a repetição de uma catástrofe econômica.
Cristina venceu a queda de braço interna. A partir de agora, é ela quem manda novamente, ao menos de fato.
A presidente que governou o país por oito anos, entre 2007 e 2015, conseguiu derrubar, por força de seus apoiadores, como o movimento La Campora, o então ministro Martín Guzmán, um moderado próximo de Fernández, que havia fechado o acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) para reestruturar US$ 44 bilhões em dívidas. Para a ala mais radical do governo, comandada por Cristina, que tem aspirações eleitorais em 2023, o acerto fazia muitas concessões que não apenas prejudicariam o crescimento do país - mas, principalmente (olha a eleição aí), seriam responsáveis pela tragédia dos mais pobres.
A inflação está na faixa dos 60% no acumulado do ano - cinco vezes maior do que a brasileira. O desemprego atinge 12%. O peso sofreu uma forte desvalorização - mais uma - frente ao dólar, uma moeda quase paralela na vida dos argentinos, desconfiados de seu próprio dinheiro.
Depois que a nova ministra, Silvina Batakis foi anunciada como nova chefe da Economia, a moeda americana (dólar blue, paralelo) alcançou 280 pesos, fechando o dia, a 260 pesos - 100% acima da cotação oficial.
O risco país, medido pelo banco JP Morgan, disparou: pico recorde de 2.654 pontos.
Uma conversa, na residência de Olivos, no final de semana dá o tom da tensão entre Fernández e Cristina. O presidente se negava a falar com a vice, e foi preciso a mediação de Estela de Carlotto, líder das Avós da Praça de Mayo.
- Sabes a quantidade de pessoas indesejáveis que tivemos de falar enquanto buscávamos por nossos filhos desaparecidos? - teria dito a Fernández.
O presidente arrefeceu, e Fernández e Cristina jantaram no domingo (3) em Olivos.
O mundo olha com preocupação para a Argentina, enquanto o país se liquefaz. A nova ministra, Batakis, próxima de Cristina, tem posições conhecidas: defende aumento dos gastos públicos. Como? Se falta dinheiro. Provavelmente, emitindo moeda. Também deve restringir o acesso dos argentinos à moeda estrangeira, o que, sabe-se, deve gerar corre-corre aos bancos, senão quebra-quebra.
São iniciativas que não deram certo no passado. Nesta quarta-feira (6), o governo teve de vender US$ 180 milhões para conter a disparada do dólar, informa o jornal Clarín. Financial Times diz que a ministra Batakis não vai acalmar os mercados.
Até a renúncia de Fernández, diante da derrota na queda de braço para Cristina, é cogitada. Em 2008, ele, que era chefe de Gabinete de Cristina, renunciou por divergências. Poderia desistir agora, que é presidente? O tema já é levantado por alguns analistas argentinos, mas Fernández, claro, nega.
Se Cristina tem pretensões para 2023, Fernández também as tem. E o resultado das eleições legislativas de novembro do ano passado, que marcaram o início efetivo da disputa pela Casa Rosada, foi um banho de água fria para o governo. No pleito que renovou metade da Câmara dos Deputados e um terço do Senado, a coalizão sofreu uma das maiores derrotas da história do peronismo - o que indica que a centro-direita, que, diga-se de passagem, também cometeu os mesmos erros na economia quando estava no poder com Maurício Macri, deve chegar com força na eleição do ano que vem.
A frase mais dita por analistas, nos últimos dias, quando questionados sobre o futuro do país é: "Rezem pela Argentina". Se até os especialistas dizem isso é porque o país saiu do prumo. Um outro calote se aproxima.
As divergências com Fernández são antigas. E o acordo que permitiu a coalizão de governo - ele como presidente, ela como vice - foi algo fora do comum. Já assumiram, a despeito das fotos, praticamente de mal.
Até que a coalizão entre diferentes setores do peronismo resistiu bastante. Se sobreviver, mesmo que aos trancos e barrancos, até a eleição de outubro de 2023, será superação. Uma trégua, a essa altura, parece impossível. Até lá, talvez nem a Argentina, infelizmente, resista.