Carlos Saúl Menem, que morreu aos 90 anos neste domingo (14), na Argentina, foi símbolo de uma América Latina que não existe mais.
Foi daqueles políticos que faziam quase tudo ao mesmo tempo - com fama de namorador, era um populista, metido a bon vivant, dançarino de tango, autor de políticas ousadas e medidas econômicas que cobrariam seu preço anos depois. Governava como um mafioso, e sobre ele recaíam suspeitas até de envolvimento com grupos extremistas do Oriente Médio.
Repórter recém-formado, fui enviado de Zero Hora à Argentina para cobrir a primeira eleição após a crise econômica do início dos anos 2000. O presidente Fernando de la Rúa havia sido despedido da Casa Rosada pela porta dos fundos, fugira de helicóptero. O episódio deflagraria um período traumático em que o país vizinho teria cinco presidentes em um mês. Eduardo Duhalde encerraria o turbilhão político, devolvendo aos hermanos alguma estabilidade.
Então, viria a primeira eleição pós-crise: 2003, e lá estava, de novo, Carlos Menem, um dos responsáveis pela maior crise econômica e social que a Argentina já conhecera, de volta à campanha, disputando a presidência com Néstor Kirchner. Sem dúvida, era um animal político.
Naquela campanha, fiquei perto de Menem em duas ocasiões: a primeira, em um megacomício no Estádio Monumental de Nuñez, em que sua aparição teve tons de Juan Domingo Perón. Houvera lágrimas da plateia, gritos de louvor dos mais empobrecidos fãs - alguns que haviam viajado de ônibus por horas só para vê-lo no palco - e Cecilia Bolocco, ex-miss Universo e sua mulher, 35 anos mais jovem, exibindo a barriga do primeiro filho do casal, Máximo, que ainda mal aparecia.
Como nenhum outro, Menem foi um caudilho, mas incorporou medidas neoliberais ao peronismo.
A segunda vez em que o vi, dias depois do Monumental de Nuñez, foi no Hotel Presidente, na Calle Cerrito, paralela a 9 de Julio. Mesmo tendo ocupado o primeiro lugar, diante de tamanha rejeição, ele abriu mão de ir ao segundo turno com Kirchner. Antes de sua fala, o ambiente era daqueles típicos da política latino-americana do século passado: velhas peronistas sentados em sofás em camurça, degustando uísque entrecortado por baforadas de charuto.
Menem era político em tempo integral. Saiu da Casa Rosada, mas nunca deixou a vida pública. Em seus 10 anos no poder, encarnou a versão latino-americana do neoliberalismo de Ronald Reagan, cujo ápice foi a paridade do dólar com o peso argentino. O "um para um" que tanto orgulhava os hermanos e os fazia pedir "dá-me dos" em viagens às praias brasileiras, vangloriando-se de sua moeda valorizada em relação a nossa.
Enquanto o Brasil digladiava com a hiperinflação, a paridade cambial argentina permitia algum nível de esbanjamento dos vizinhos. Era um hiato. Na verdade, um período artificial que descambaria na recessão de 1999.
Muçulmano, Menem se converteu ao catolicismo porque assim exigia a Constituição para ser presidente. No poder, alterou a cartilha peronista baseada no dueto estatização-nacionalismo, para incorporar o Consenso de Washington das privatizações em massa. Seu mandato foi marcado por denúncias de corrupção - uma delas, a exportação de armas ao Equador e à Croácia, entre 1991 e 1996, período em que esses países estavam sob embargo internacional. Também foi acusado de ter encoberto a primeira investigação do atentado ao centro judaico Amia, que deixou 85 mortos em 1994.
Em 26 de março de 1991, estava sentado à mesa em Assunção com os demais presidentes da região para a fundação do Mercosul.
Fora da Casa Rosada, seguiu atuando nos bastidores. Chegou a ser condenado pelo tráfico de armas a sete anos de prisão. Foi uma de tantas outras condenações que recebeu - por suborno a autoridades com dinheiro público e superfaturamento de obras, por exemplo. Mas Menem voltou a se eleger em 2005 senador por La Rioja, sua província natal. Foram outras sucessivas vezes - o que lhe garantiu imunidade parlamentar até o fim da vida. Em 2019, ele foi absolvido da acusação de encobrir a investigação do atentado contra a Amia.
Sua história deu cara a um movimento político que, por vezes, se tornou maior do que o próprio peronismo - o menemismo.
Menem estava internado em uma clínica de Buenos Aires desde 15 de dezembro. Ele havia sido submetido a um exame de próstata, que detectou uma infecção urinária que acabou por complicar seu quadro de problemas cardíacos. Mais tarde, ele entrou em coma por "descompensação renal". Seu corpo será velado no Congresso argentino.