Como nos tempos da Guerra Fria, a Europa Central está encurralada entre duas potências, Estados Unidos e Rússia, agora que os tambores da guerra ressoam, infelizmente, de novo, no Velho Continente. Se correr, o bicho pega. Se ficar, o bicho come. Para Leste ou Oeste. A diferença é que, hoje, o mundo não é mais bipolar (com dois blocos alinhados carnalmente a EUA ou Rússia), e as interconexões econômicas, em geral, pairam acima das decisões ideológicas, políticas e fronteiriças.
Um exemplo: os americanos podem até não gostar, mas investimentos da China, seu rival estratégico número 1, estão espraiados pela Europa, a ponto de que, se hoje Joe Biden caísse na asneira de perguntar "Vocês estão conosco ou com eles?", os líderes europeus titubeariam na resposta. Não é mais necessário escolher um lado. Há mil tons de cinza no espectro, e o pragmatismo, ou a velha "raison d'Etat", é a melhor estratégia.
Antes de 2001, não era assim. Era fundamental escolher um lado - o americano ou o soviético. Ali, com a entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC), o dragão começou a lançar suas garras pelo mundo, fazendo negócios indiferentemente das cores ideológicas - como dizia Deng Xiaoping: "Não importa a cor do gato, contanto que ele cace o rato".
Porém desde o fim da II Guerra Mundial e ao longo da Guerra Fria, os Estados Unidos foram não apenas os reconstrutores da Europa, mas os fiadores da segurança no continente. O Plano Marshall americano reergueu os países devastados pelo maior conflito que o mundo já viu.
Foi menos por solidariedade e mais por medo de que esse terreno precioso fosse abocanhado pelos soviéticos. Mas ok, o fato é que a Europa não teria emergido das cinzas sem os mais de US$ 12 bilhões americanos. Em troca, há uma dívida de gratidão europeia, uma aliança por vezes automática aos interesses da Casa Branca, materializada na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
Mas até quando a Europa poderá contar com os Estados Unidos para a sua defesa? Mais, até quando abrirá mão dos seus próprios interesses para ser fiel a essa dívida de gratidão?
Na atual crise que ameaça colocar o mundo na primeira guerra de 2022, na Ucrânia, esse dilema aparece de novo. A Rússia quer que a Otan retorne ao status de 1999 (sem países de sua área de influência, como Polônia, República Tcheca e outros) e a promessa de que a Ucrânia não cairá no canto da sereia e entrar na aliança atlântica. EUA, cabeças da Otan, dizem que não há retorno - e, como medida protetiva, os mísseis e radares seguem posicionados em direção a Moscou em países do Leste Europeu. Com relação à Ucrânia, o Reino Unido, nos últimos dias, forneceu armamentos antitanque para a Ucrânia, enquanto a Rússia, que já tinha 100 mil militares posicionados na fronteira ucraniana, abriu nova frente com tropas e equipamentos bélicos em Belarus.
Os Estados Unidos miram a China como grande competidor do século 21, mas fantasmas do passado reapareceram na calada da noite, obrigando os estrategistas americanos a lidarem com dois fronts - além da região da Ásia-Pacífico (prioridade estabelecida por Barack Obama, seguida por Donald Trump e Biden), a continuidade da contenção da Rússia na Europa, uma tradição, promessa nascida na Conferência de Yalta, que sepultou a II Guerra Mundial, redesenhou o mapa do continente e determinou o Leste Europeu como zona de influência da antiga União Soviética.
E é aí que aparecem os interesses econômicos a bagunçar a ideia de quem defende a antiga visão de um mundo bipolar: hoje, o Nord Stream 2, gasoduto que levará gás da Rússia para a Alemanha, está pronto e sua operação depende desse arremedo de Guerra Fria cessar. O gás russo é importante para a transição energética alemã, porém dá a Gazprom (estatal russa) o poder de ser o principal fornecedor do produto na Europa. Em outras palavras, as chaves das torneiras do gás estão nas mãos de Putin, que pode desligá-las quando quiser, congelando boa parte do continente. Por outro lado, crises recentes como a dos submarinos franceses mostrou que alianças baseadas apenas em ideologias são contraproducentes. A Austrália rescindiu o contrato com o grupo francês Naval Group e optou por um acordo com os EUA e Reino Unido, para comprar os aparelhos, deixando a França, literalmente, a ver navios. Tanto o ex-presidente Trump quanto o atual, Biden, considera, que seus aliados devem ser dóceis, ponderou o ministro francês da Economia, Bruno Le Maire. O mundo não é mais bipolar, o pragmatismo deve vigorar, mas ser independente também custa dinheiro.