A retumbante vitória de Gabriel Boric (pronuncia-se Bórich) significa a chegada de um novo ciclo político para o Chile em particular e para a esquerda latino-americana em geral. Falo de uma esquerda democrática, não de corruptelas que descambaram para o autoritarismo, como a Venezuela de Nicolás Maduro e a Nicarágua de Daniel Ortega. Partidos de esquerda que desejam chegar ao poder e se manter nele, de forma democrática, têm em Boric e na coalizão Apruebo Dignidad (que reúne Frente Ampla e o Partido Comunista) um modelo, sobretudo, porque enfrentam desafios semelhantes em seus países.
De forma geral, a América Latina vive de ciclos políticos. Após as ditaduras militares de direita, nos anos 1960 e 1970, o que se viu, a partir do final dos anos 1980 e ao longo dos 1990, foram governos democráticos com administrações liberais: Fernando Collor de Mello (Brasil), Carlos Menem (Argentina), Alberto Fujimori (Peru), Carlos Salinas (México), entre outros, que deixaram como legado a hiperinflação, a pobreza e a dependência de organismos externos, como o Fundo Monetário Internacional (FMI).
A partir dos anos 2000, a chamada "onda rosa" significou a ascensão de presidentes de esquerda e de centro-esquerda na região: no Brasil, com Luiz Inácio Lula da Silva, no Uruguai com José "Pepe" Mujica, na Argentina, com Néstor Kirchner e depois Cristina Kirchner, no próprio Chile com Michelle Bachelet, na Bolívia, com Evo Morales, no Equador com Rafael Correa e na Venezuela, com Hugo Chávez. Claro que aqui havia governos de diferentes matizes - desde uma centro-esquerda chilena a uma extrema-esquerda, como a venezuelana. Esse ciclo foi rompido com a eleição de Mauricio Macri, na Argentina, em 2015, quando uma "onda azul" se tornou hegemônica.
Não se pode dizer que a vitória de Boric traga de volta a esquerda ao poder como um todo na região - vários governos de países importantes estão sob administração da direita, casos de Brasil, Uruguai, Paraguai, Equador e Colômbia. Mas Boric engrossa o alinhamento político do subcontinente ao lado de líderes de Argentina, Bolívia e Equador - a Venezuela é um caso a parte, pela sua excepcionalidade do regime ditatorial.
O presidente eleito chileno defende maior participação do Estado nos sistemas previdenciário, de educação e de saúde —o que responde ao levante de 2019, mas confronta o modelo liberal chileno que tanto ajudou o crescimento do PIB como intensificou a desigualdade. Para pagar a conta, Boric propõe aumento de impostos e taxação progressiva dos mais ricos. Fala em regular, não em nacionalizar, o que o distancia de líderes de extrema-esquerda.
Outro fator fundamental: além de enfatizar a importância do feminismo e do reconhecimento de minorias para alcançar uma sociedade mais justa, agendas caras à esquerda, Boric marcou diferença ao longo da campanha ao criticar os regimes venezuelano, cubano e nicaraguense. Ele fez o que poucos políticos de esquerda têm coragem de fazer - inclusive no Brasil. Esse posicionamento, por si só, já representa algo novo e fundamental.