O pleito deste domingo (19) no Chile, com resultados imprevisíveis, é acima de tudo a eleição do medo. O medo da volta do "autoritarismo" ou do "comunismo", da "desordem" ou do retrocesso de direitos fundamentais.
Quem votar em José Antonio Kast, candidato do Partido Republicano, estará, acima de tudo, rejeitando as ideias que o adversário representa. O mesmo ocorre com os eleitores de Gabriel Boric, da chapa Aprovo Dignidade. Claro que há os adeptos de cada, mas, grosso modo, este será sobretudo o voto do "não" ao oponente, mais do que uma escolha por convicção nos ideais do escolhido.
Quem diz não a Boric teme:
- Que o Chile se torne uma "ditadura comunista", uma vez que a chapa do candidato de esquerda é integrada pelo Partido Comunista.
- A perda de benefícios sociais, que, em um pobre país rico favoreceram as classes mais altas da sociedade, e esse foi um dos panos de fundo da revolta do final de 2019, a divisão desigual do bolo.
- A perda de empregos para migrantes, em especial, ilegais, provenientes de países como Venezuela e Haiti.
- Que o país se torne um antro de criminosos e narcotraficantes.
- Retrocessos nos debates sobre a nova Constituição, que está sendo redigida por uma Assembleia Constituinte em que minorias como mulheres e povos originários, como os mapuches, têm papel de destaque. Em um país com problemas de distribuição de terras, a questão agrária também é importante.
Quem diz não a Kast teme:
- A volta de uma ditadura de extrema-direita, como a de Augusto Pinochet, de quem Kast se diz admirador.
- A radicalização política do país. No último discurso, no distrito de Las Condes, em Santiago, havia representantes de grupos extremistas, como The Real Patriots, fundado por um ex-líder de torcida organizada condenado por homicídio;
- O retrocesso de direitos como a aprovação do casamento igualitário entre pessoas do mesmo sexo. Kast classificou a iluminação do Palácio de la Moneda com as cores da causa como um ato da "ditadura gay". E da reversão da lei do aborto. Kast é ligado a setores da Igreja Católica, muito poderosa no Chile, que se opõe à legislação.
- Que o país desrespeite os direitos humanos, uma vez que o candidato, em seu afã de "lei e ordem", prometeu mão forte contra a delinquência, com prisões em outros locais que não presídios tradicionais - isso traz à memória detenções arbitrárias por motivações políticas, como na ditadura.
- Que a mudança na Constituição provoque mudanças, privilegie redistribuição de terras e corroa privilégios.
Pela primeira vez, representantes tradicionais da política chilena não estão no segundo turno. Essas forças foram obrigadas a se rearticular entre Kast e Boric. Figuras tão antagônicas são resultado do complexo processo chileno nos últimos dois anos - revolta nas ruas, repressão, plebiscito, eleição constituinte, aprovação do casamento igualitário e pedidos de impeachment, sem falar da pandemia. A última pesquisa mostra empate técnico: 48,5% para Kast e 48,4% para Boric, com margem de erro de dois pontos para mais ou para menos.
Não é apenas pela polarização entre direita e esquerda que o mundo em geral e a América Latina em particular olham para o Chile. As próximas 72 horas serão uma espécie de revival do que algumas nações da região já viveram - e outras viverão, se o resultado do pleito, a se confirmar as pesquisas, for muito apertado. Nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump lançou dúvidas, mesmo depois dos resultados, sobre a lisura do pleito - e a vitória de Joe Biden. Tentou judicializar a eleição, mas não levou porque a Justiça indeferiu as tentativas republicadas de bagunçar o pleito. No Peru, houve algo semelhante: o Judiciário não aceitou os recursos da candidata conservadora Keiko Fujimori e concedeu ao líder da esquerda, Pedro Castillo, a vitória por uma diferença de cerca de 44 mil votos, cinco semanas após o termino da votação. No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro lança dúvidas sobre o pleito, no que se ensaia como um questionamento judicial, se o resultado for apertado. De olho em 2022, o Brasil tem a aprender com o Chile - para o bem ou para o mal.