O Chile que emerge das urnas deste domingo (19) é completamente diferente do que se viu até aqui, em mais de 30 anos de democratização. Não só pela contundente vitória do candidato de esquerda, Gabriel Boric, 35 anos, o mais jovem presidente a chegar ao comando do Palácio de La Moneda.
O apertado resultado das urnas, que poderia levar o processo eleitoral a uma judicialização, não se confirmou. O silêncio provocado pela falta de pesquisas (por lei, elas não poderiam ser divulgadas na última semana) revelou que, desde o último levantamento (que apontava empate técnico), as peças se moveram silenciosamente. O eleitor falou, e Boric chega ao poder com mais de 10 pontos percentuais de diferença em relação ao adversário de extrema-direita, José Antonio Kast (55,86% contra 44,14%, com 99,66% das urnas apuradas).
O Chile disse não ao radicalismo, a um candidato que tentou resgatar a memória do ditador Augusto Pinochet, cujo nome, inscrito na infâmia da história latino-americana, ainda desperta algum sentimento na sociedade. Mas, como a democracia mostrou, muito menor do que alguns pensavam.
O Chile que nasce deste 19 de dezembro também, pela primeira vez, tem forças políticas tradicionais completamente alijadas do poder. O fracasso da centro-direita e da centro-esquerda no primeiro turno é resultado direto dos processos de transformação pelos quais o país passou nos últimos dois anos - em especial, a revolta por mais igualdade social iniciada no final de 2019. O trinfo de Boric é a consolidação da voz das ruas naquela jornada.
Mais do que a chegada de Kast e de Boric ao segundo turno - na primeira volta o resultado foi 27,91% a 25,92% -, o pleito significou o fracasso dos partidos que lideraram a nação desde Pinochet, entre eles as legendas de centro-direita de Sebastián Piñera, que deixará o governo com baixa popularidade e duas tentativas de impeachment nas costas, e a centro-esquerda de Ricardo Lagos e de Michele Bachelet.
Efeito colateral do descrédito das forças tradicionais foi a guinada aos extremos.
No aspecto interno, Boric enfrentará desafios políticos e sociais complexos - em meio à pandemia (ainda que o país seja um dos campeões da vacinação contra a covid-19), um processo constituinte em aberto, em pleno desenvolvimento, que será encerrado em 2022, durante seu primeiro ano de mandato, e projeções econômicas de crescimento entre 1,5% e 2,5% para 2022 - para 2023, entre zero e 1%.
Sua vitória está muito afinada aos desejos expressos pela população nas revoltas de 2019 - o medo era de que, com uma possível eleição de Kast, os avanços dos últimos meses (como o reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo) retrocedessem ou que um eventual governo de extrema-direita tentasse bloquear transformações expressas na Constituinte. Também o triunfo de Boric aprofunda a sensação de que o clamor das ruas põe em xeque o modelo neoliberal adotado pelo país.
Os chilenos não votaram apenas tendo como base o plano de governo dos candidatos. Votaram por alinhamento ideológico: pelo que os candidatos representavam ou não, o que, de certa forma, provoca fraturas. Por isso, a primeira missão de Boric no La Moneda será reconstruir confiança. Os extremos devem dar um passo rumo à reconciliação.
A eleição deste domingo pode fechar um ciclo iniciado em 2019, quando veio à tona para o mundo que o desenvolvimento do país, exibido aos quatro ventos, não chegava a todas as parcelas da população - em especial, aos extremos da pirâmide social (idosos, com difícil acesso à saúde e previdência) e aos jovens, com educação caríssima.
As urnas mostraram que Boric não terá maioria no Congresso, o que o obrigará não apenas a moderar o tom da campanha, agora, no governo - algo que já vinha fazendo - como exercitar uma capacidade de articulação que, fatalmente, o trará para o centro.
No campo externo, a rejeição dos chilenos à extrema-direita significa que o país disse não a uma forma de se fazer política alinhada à chamada nova direita, que une personalidades como Donald Trump e Jair Bolsonaro.
Boric engrossa o alinhamento político do subcontinente ao lado de líderes de Argentina, Bolívia e Equador, que são administrados pela esquerda - a Venezuela é um caso a parte, pela sua excepcionalidade do regime ditatorial. Forças conservadoras de Brasil, Uruguai, Paraguai, Equador e Colômbia, que torciam por Kast, perderam.