Dentro de três dias, o Chile virará uma página importante de sua história, depois de dois anos de processos políticos que sacudiram os pilares das instituições do país: a revolta das ruas, exigindo melhorias sociais (em especial na educação e no regime de previdência), um referendo no qual a maioria da população decidiu por uma nova Constituição (a última é do tempo da ditadura de Augusto Pinochet), a eleição da Assembleia Constituinte que está escrevendo a nova Carta Magna, dois processos de impeachment contra o presidente Sebastián Piñera e aprovação, este mês, do casamento igualitário. Tudo isso, em meio à pandemia de coronavírus, em que a nação é exemplo mundial de cobertura vacinal.
O sucessor de Piñera, eleito no próximo domingo (19), será o esquerdista Gabriel Boric ou o ultradireitista José Antonio Kast, um duelo de extremos que polariza a sociedade chilena e, grosso modo, pode servir de prévia para um Brasil de 2022.
Os dois candidatos discordam de tudo entre si. No penúltimo debate, o tema da migração serviu para evidenciar os antagonismos. Como o Brasil, o Chile recebeu uma onda de migrantes provenientes de vizinhos mais pobres latino-americanos: em especial do Haiti pós-terremoto de 2010 e outras mazelas econômicas e naturais, e da Venezuela, da ditadura Nicolás Maduro. A diferença é que, diferentemente daqui, mas muito parecido com o que há na Europa e nos Estados Unidos, a onda migratória foi politizada: a extrema-direita adotou o discurso de que migrantes ilegais são os culpados por todos os males do Chile, da criminalidade ao "roubo" de postos de trabalho dos nacionais. Boric vem prometendo melhor acolhida, mas, em uma tentativa de captar o apoio do centro, tem prometido maior controle para evitar a migração ilegal.
Kast emula o ex-presidente Donald Trump, ao dizer que irá construir uma barreira no Norte, na cidade de Iquique, para evitar o ingresso de ilegais. Na versão chilena, a promessa é uma vala, e não um muro, embora o candidato tenha, nos últimos dias, suavizado o tom na tentativa também de alcançar os votos dos indecisos de centro.
Kast já fez elogios à ditadura chilena, inclusive confirmando que, se eleito, durante um estado de exceção, poderia manter pessoas presas em lugares distintos de presídios tradicionais. Boric prometeu liberar o cultivo de maconha para consumo próprio, ao que Kast acusou a medida como uma porta de entrada para drogas mais pesadas.
A legislação eleitoral chilena é bastante rígida. Pesquisas de boca de urna são proibidas. E o último levantamento, do Instituto Cadem, é de pelo menos uma semana atrás. Nele, Boric aparecia com 40% dos votos, contra 35% de Kast. Como havia pelo menos 25% de indecisos, o resultado do domingo (19) é uma incógnita.
Boric, que tem apoio do Partido Comunista, angariou as principais forças de centro-esquerda chilenas, entre elas os ex-presidentes Ricardo Lago e a Michelle Bachelet, atual chefe do Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos. Não chega a causar surpresa o apoio de Bachelet, cujo pai, o brigadeiro-general Alberto Bachelet, foi morto em 1974 em decorrência de torturas pelo regime Pinochet, de quem Kast é admirador. Seu apoio a Boric, entretanto, exercendo o cargo nas Nações Unidas, foi criticado por setores conservadores, que viram no gesto ingerência externa. Parênteses: Bachelet está de férias no Chile.
Já Kast angariou o apoio das principais forças de centro-direita, entre elas de apoiadores do presidente Piñera (reunidos na coalizão Chile Vamos). O sucesso do Chile na vacinação é um trunfo importante, onda que o candidato vem buscando surfar - embora, pudesse ter aproveitado melhor. Tanto a UDI quanto a Renovação Nacional expressaram apoio a Kast, assim como a direita liberal.
Ganhe quem ganhar, terá desafios hercúleos sociais e econômicos pela frente, em um país que, por anos, foi modelo do neoliberalismo no Cone Sul. E, pela importância geopolítica que tem, enviará mensagens aos vizinhos, engrossando um ou outro lado do espectro político: hoje, Brasil, Uruguai, Paraguai, Equador, Colômbia têm governos de direita na América do Sul. Argentina, Bolívia e Equador são administradas pela esquerda - além da Venezuela, que é um caso a parte, anos-luz do debate democrático.