Quando a covid-19 cruzou o Atlântico, em 2020, atingindo em cheio os Estados Unidos, Andrew Cuomo se tornou o antagonista do então presidente Donald Trump.
Enquanto o comandante-em-chefe da nação ecoava em pronunciamentos nas redes sociais todo o seu negacionismo em relação à pandemia, o governador de Nova York comparecia a programas de TV passando instruções claras a seus conterrâneos, encarando o coronavírus com seriedade e mobilizando o quarto Estado mais populoso do país como quem se preparava para uma guerra tão cruel quanto aquela vivida na manhã de 11 de setembro de 2001.
Cuomo, filho do ex-governador Mario Cuomo, que comandou o Estado por 12 anos, fala a linguagem dos nova-iorquinos como legítimo nativo do Queens. Por conta do combate ao coronavírus, ele viveu seu momento estrela, quando, graças à vacinação, conseguiu reduzir os índices de hospitalização e mortes por covid-19. Era a "cuomomania".
Quase não havia tempo hábil para pré-candidatura, mas muitos acreditavam que Cuomo seria muito mais "presidenciável" do que Joe Biden na eleição de novembro. Vaidoso, o governador, entretanto, parecia adiar os planos para depois do fim do terceiro mandato - ou, quem sabe, de um eventual quarto a partir da reeleição, no ano que vem.
Cuomo encerrou o ano da peste de 2020 com mais de 70% de aprovação, quase o mesmo percentual dos que passaram a apoiar sua renúncia de uma semana para cá, quando um sólido inquérito veio a público com acusações de assédio sexual contra 11 mulheres, entre funcionárias e ex-funcionárias de seu gabinete. O documento de 168 páginas, que contou com o testemunho de 179 pessoas durante cinco meses de apuração, abriu a caixa de Pandora de sua administração. Ele renunciou nesta terça-feira (10).
O ensaio como estrela nacional foi um voo de galinha. E a "cuomomania" era apenas um hiato da vida pública do agora ex-governador. Seus esqueletos no armário eram conhecidos. Pessoas próximas o descrevem como arrogante e vingativo, metido a sedutor. Mas, até a investigação, seus podres eram acobertados por pedidos de desculpas vagos pelo que considera "tentativas malsucedidas de ser afetuoso", eventuais desmentidos e até por políticas públicas contra o assédio sexual em local de trabalho, crime de que é acusado agora.
O sucesso da luta contra a covid-19 já era colocada em dúvida por escândalos como uma investigação que veio a público no início do ano segundo a qual sua administração maquiou estatísticas de mortos em casas de idosos pela pandemia. O número oficial falava em 8 mil óbitos. A procuradoria alegava que, pelos relatos que obteve, esse total seria 50% maior. Resultado: o próprio Cuomo teve de admitir que 15 mil pessoas morreram nesses lares.
Há uma semana, Cuomo vem negando as acusações de assédio. Mas a situação se tornou insustentável diante da robustez do inquérito (o governador transformou o gabinete em um "ambiente tóxico" onde imperava "o clima de medo", nas palavras da promotoria) e da debandada dos correligionários, entre eles pesos-pesados do partido, como Biden, o presidente da Assembleia estadual, Carl E. Heastie, os senadores Chuck Schumer e Kirsten Gillibrand e a deputada Alexandria Ocasio-Cortez.
Há várias repercussões políticas do caso. A primeira delas é sobre o futuro do próprio Cuomo, que verá sepultada qualquer tentativa de chegar à presidência dos EUA - ou mesmo de concorrer de novo ao governo do Estado de Nova York. A segunda é um baque para o próprio Partido Democrata, legenda que faz da luta por igualdade de gênero, da tolerância zero contra o assédio sexual e da defesa de movimentos como #MeToo a base de sua agenda.
Em tempo, quem assume no lugar de Cuomo é a vice-governadora Kathy Hochul, advogada que transformou em bandeira justamente o combate à violência sexual - no caso, em universidades de Nova York. Pela primeira vez em 233 anos de história, o Estado terá uma mulher como governadora.
Em tempo 2, Cuomo, embora adversário político de Trump, não é o democrata que comprou briga com o presidente Jair Bolsonaro, em 2019, como muitos pensam. Aquele é o atual prefeito de Nova York, Bill de Blasio, que chamou o brasileiro de racista e homofóbico. Na ocasião, Bolsonaro cancelou a participação em um evento na cidade americana no qual receberia a homenagem de Personalidade do Ano da Câmara de Comércio Brasil-EUA.