A revolta de Hong Kong contra o torniquete do autoritarismo chinês é anterior ao coronavírus. Meses antes de a covid-19 surgir em Wuhan, os coloridos guarda-chuvas dos manifestantes abriram-se dando à antiga colônia britânica devolvida a Pequim em 1997 ares de Ucrânia pré-revolução.
Mas aos poucos o maior desafio ao poder chinês desde os protestos da Praça Tiananmen (Paz Celestial) foi sendo silenciado em meio à pandemia, com demonstrações de força, como a concentração de tropas em Shenzhen, nas barbas de Hong Kong, a prisão de opositores e a asfixia de recursos financeiros da imprensa independente.
Enquanto o Ocidente vivia o auge da primeira onda da pandemia e quase não prestava mais atenção ao que ocorria em Hong Kong, o regime chinês adotou a Lei de Segurança Nacional, que lhe permite intervir diretamente no território para sancionar arbitrariamente qualquer coisa que considere "crime contra o Estado". Em princípio, seriam quatro crimes - terrorismo, subversão, secessão e conluio com forças estrangeiras.
A falta de detalhamento do que seria considerado "crime contra o Estado" é proposital. Deixa a expressão aberta à interpretação ocasional de mandaletes do Partido Comunista no território. No arco do que pode ser considerado "crime contra o Estado" há manifestações, ocupações, pichações, uma crítica dirigida a um funcionário público ou uma reportagem que o governo simplesmente não tenha apreciado. Literalmente, qualquer coisa. Um exemplo: em 2 de julho do ano passado, o governo disse que os slogans dos manifestantes, "Liberte Hong Kong, a revolução dos nossos tempos", poderia constituir "subversão".
A legislação ameaça especialmente os jornalistas. Jimmy Lai, fundador do diário pró-democracia Apple Daily fechado na quarta-feira (23) após 26 anos, está preso e processado por essa lei - e pode pegar prisão perpétua. O grupo audiovisual público Radio Television Hong Kong (RTHK) é alvo de campanha de intimidação para restringir sua autonomia editorial, com a substituição do diretor de radiodifusão por um funcionário público a serviço do regime chinês.
Diariamente, um punhado de veículos de comunicação online independentes, financiados de forma participativa e com audiência crescente, como Citizen News, Stand News, The Initium, Hong Kong Free Press e outros lutam para se manter não apenas relevantes, mas vivos - o que obriga jornalistas a conviverem com ameaças, ataques de boots em redes sociais, comunicações rastreadas por aplicativos, invasão das redações por policiais e a pior das censuras, a autocensura.
Hong Kong ocupa hoje a 80ª posição na classificação mundial da Liberdade de Imprensa, elaborada pela organização Repórteres Sem Fronteiras sobre a situação em 180 países. Desde 2013, caiu 22 posições. Em 2002, quando o ranking foi criado, o território ocupava a 18º colocação - ano após ano, houve a deterioração da liberdade de imprensa e expressão, sintoma principal de que a democracia em fase terminal.
O fechamento do Apple Daily representa o fim de uma das poucas publicações locais que ousam criticar as autoridades chinesas. Embora o Ocidente considere Hong Kong uma joia capitalista encravada em território chinês, dia após dia, a truculência tem mostrado que quem manda na ilha é a China. E a liberdade dá seus últimos suspiros.