Xi Jinping ainda não havia aterrissado de volta a seu país, após o encontro dos Brics (grupo que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), em Brasília, na semana passada, mas a poderosa engrenagem da ditadura comunista já estava em movimento para endurecer a repressão contra os manifestantes de Hong Kong. Iniciada em junho, a crise no território semiautônomo de 7,5 milhões de habitantes atingiu um ponto de inflexão com a entrada em cena do Exército Popular de Libertação nas ruas do enclave pela segunda vez desde que a região foi devolvida pelo Reino Unido à China, em 1997 — a primeira foi em 2018, para ajudar na limpeza após a passagem de um tufão Mangkhut. Dessa vez, por enquanto, os soldados vermelhos saíram dos quartéis para auxiliar na retirada de barricadas das vias, mas daí a assumirem a missão de controlar o caos é um passo.
A presença dos militares em Hong Kong, uma ilha de democracia liberal em meio ao regime autoritário chinês, é regida pelo artigo 14 da Constituição de Hong Kong: o exército chinês pode intervir por ordem do Executivo para "manter a ordem pública" ou em caso de "catástrofe humanitária". Já o artigo 18 permite ao poder central suspender as leis de Hong Kong, em caso de "estado de guerra", ou de "caos", que "ponha a segurança nacional, ou a unidade, em perigo".
Onde há poder há resistência, como ensina Foucault: se os chineses recrudesceram a repressão, os manifestantes também subiram um degrau no radicalismo, adotando uma tática chamada de "Blossom Everywhere" (Floração em todos os lugares, em tradução livre). A ideia é mais simples do que o nome: consiste em multiplicar os bloqueios e os atos de protesto para testar a capacidade de resposta da polícia.
O palco mais simbólico dos confrontos dos últimos dias é a Universidade Politécnica (PolyU), onde 200 manifestantes estão entrincheirados. Nesta segunda-feira, a polícia decidiu invadir o local. À medida que as tropas avançavam, os ativistas ateavam fogo. Relatos de estudantes que estavam dentro do campus, divulgados por grupos do aplicativo de mensagens Telegram, afirmavam que todas as saídas da universidade foram bloqueadas pela polícia. Ativistas foram obrigados a tirar suas roupas porque, entre as substâncias utilizadas pelos agentes, haveria gás de pimenta.
Os arredores do campus estão cercados por estruturas de madeira, que lembram os resistentes da praça Maidan, na Ucrânia, em 2014. O documentário "Inverno em chamas" ("Winter on fire"), do diretor russo Evgeny Afineevsky (disponível na Netflix) lembra que, quando eclodiram as manifestações no local, em novembro de 2013, alguns pensaram se tratar de apenas uma agitação antigoverno momentânea. Mas ali era acesa a fagulha que provocaria a queda do presidente Viktor Yanukovich (pró-Moscou) em três meses, mudando a rota da Ucrânia em direção à Europa. Não à toa, o exército chinês só foi para as ruas de Hong Kong após troca de mensagens entre o ministro chinês da Defesa, Wei Fenghe, e o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Mark Esper. Os episódios da Universidade Politécnica têm combustível para mudar o status de Hong Kong — mas, acima de tudo, podem deteriorar ainda mais as relações da China com os americanos.