O fotógrafo de ZH André Ávila, que esteve na Índia em 2019, me contou a seguinte cena ao ver os relatos do pandemônio ao qual os indianos estão imersos, diante da explosão dos números da covid-19 no país:
- Quando fui fotografar um crematório na cidade sagrada de Varanasi, em poucos minutos, perdi a conta de corpos chegando. Parei de contar logo depois de uns 10. Morre muita gente, imagina com a pandemia.
A cremação, para os hindus, tem forte simbologia - uma das bases da religião é a crença na reencarnação, por isso, é necessário que a alma se liberte do corpo material para seguir seu caminho na roda das encarnações. Com a crise no sistema indiano, até os crematórios, normalmente superlotados, já estão em colapso.
- O mais triste é que como tem muita gente miserável, não é raro uma família não ter dinheiro para comprar lenha o suficiente para cremar um corpo. Às vezes, tu vês uma cervical sobrando no chão - lembrou André.
Nesta segunda-feira (26), a Índia registrou pelo quinto dia consecutivo recorde de novos casos de covid-19: 352.991 em 24 horas. Nesse período, o país foi responsável por 48% de todos os casos do mundo. Registrou, também em 24 horas, 2.812 novas mortes, e voltou a ultrapassar o Brasil como nação com mais vítimas de coronavírus em um dia.
É um paradoxo que a Índia, conhecida como a "farmácia do mundo", por sua grande capacidade fabril de produção de medicamentos e vacinas, sede do maior fabricante de vacinas do mundo, esteja passando por essa tragédia.
A realidade indiana, entretanto, demonstra o quanto o coronavírus é traiçoeiro e pega, de surpresa, os incautos governantes que, soberbamente, acreditam tê-lo vencido. No início de março, o ministro da Saúde da Índia, Harsh Vardhan, declarou que o país estava "na fase final" da pandemia. O otimismo era baseado em uma queda acentuada nas notificações de infecções. O país que chegara a 93 mil casos por dia, em média, em setembro, registrava, em fevereiro, 11 mil casos em 24 horas, em média.
Em janeiro, a Índia começou a enviar doses de imunizantes para outros países como parte de sua "diplomacia da vacina" _ primeiro para nações de seu entorno estratégico, como Mianmar e Bangladesh, a fim de contrabalançar a influência chinesa na região. Depois, para o resto do mundo _ inclusive o Brasil. Um erro de cálculo já aparecia. O governo do nacionalista Narendra Modi iniciaria a exportação para o Brasil antes do começo da campanha de imunização interna. Diante de críticas internas, o governo recuou, atrasou o envio e começou a vacinação doméstica.
O sinal não foi ouvido. Com pressa de mostrar que "tudo estava bem" e que "o pior havia passado", o populista Modi autorizou o retorno à "vida normal". O país realizou eleições em cinco importantes Estados, sem protocolos de segurança e distanciamento social. Em março, partidas de críquete foram organizadas com mais de 130 mil torcedores, a maioria sem máscara, de volta aos estádios.
No domingo, as cenas de cremações em massa já corriam o mundo. Ambulâncias e riquixás transportam pacientes até a frente de hospitais que não têm recursos para atendê-los. Falta oxigênio.
Pior do que a subnotificação _ bem provável em um país com 1,4 bilhão de habitantes, uma burocracia que entrava a administração, um primeiro-ministro populista, herdeiro de Donald Trump e que ainda recomenda cloroquina no tratamento dos doentes, medicamento sem comprovação científica _ era a frase que era dirigida às famílias que buscavam auxílio para a última homenagem a seus entes queridos mortos:
- Cremem seus familiares em casa.