As imagens de miséria a que você está acostumado a ver de megalópoles como Nova Délhi, Calcutá e Bombaim não são necessariamente o retrato completo da Índia, uma das nações em desenvolvimento que mais cresceram nas últimas décadas e que rivaliza com a China em poder econômico e influência política e militar no sul da Ásia.
Não é por acaso que o país do qual o Brasil pretende importar grandes lotes de vacina contra a covid-19 tem potencial para salvar boa parte do mundo. Há mais de oito anos, a Índia deu uma guinada na área científica, com investimentos na faixa de US$ 12 bilhões por ano em ciência, tecnologia e inovação.
À época, o primeiro-ministro Manmohan Singh, um dos responsáveis pelo grande salto indiano para frente, afirmou que ciência de ponta seria a chave para o desenvolvimento. Em 2011, um relatório produzido pela Royal Society intitulado “Knowledge, Network and Nations: Global Scientific collaboration in the 21st Century” apontava nações como a Índia como uma das que estavam “emergindo como atores principais no mundo científico para rivalizar com as superpotências tradicionais”- leia-se Estados Unidos, Europa Oriental e Japão.
Os resultados da ambiciosa política científica indiana aparece quando o país e o mundo mais precisam. A nação é a segunda do planeta com maior número de mortos e infectados pela covid-19. E boa parte do planeta enfrenta a segunda onda.
Embora uma das vacinas que o Brasil irá importar leve o selo da prestigiosa universidade britânica Oxford, em parceria com AstraZeneca, as doses que chegarão ao país são produzidas pelo laboratório Serum Institut, o maior fabricante mundial de vacinas, localizado em território indiano. O outro lote, de 5 milhões de doses da chamada Covaxin, é originariamente indiana, do laboratório Bharat Biotech, que o governo também aprovou seu uso de forma emergencial do final de semana.
Se o grande salto tecnológico indiano iniciou em 2013, a escalada da nação de Gandhi em exportações de produtos farmacêuticos é bem anterior, do início dos anos 2000. As vendas de produtos farmacêuticos cresceram cerca de 20% ao ano nas duas últimas décadas e devem somar US$ 20 bilhões em 2020.
Enquanto o mundo olhava para as incubadoras de tecnologia europeias, britânicas e chinesas, a Índia corria silenciosamente rumo a se tornar um ator importante no xadrez global da vacina. Mais barata e com menor grau de exigência do produto da Pfizer, a Covaxin, por exemplo, pode se tornar o grande imunizante dos países pobres ou em desenvolvimento, ainda maciçamente no fim da fila da corrida pela vacina.
Antes, no entanto, precisará superar desconfiança semelhante à enfrentada pela Sputnik V. Como a vacina russa, a Covaxin é observada com lupa e desconfiança por pesquisadores estrangeiros, uma vez que o governo não divulgou dados sobre a eficácia da vacina para revisão por pares acadêmicos - algo que o Kremlin também não fez.
A seu favor, entretanto, a Índia tem um currículo robusto em produção de vacinas e medicamentos: o Serum Institut, subsidiário da holding Poonawalla Investment & Industries, contratado pela Oxford/AstraZeneca para produzir em grande escala a vacina britânica, foi fundado em 1966. É o maior produtor mundial de vacinas em número de doses produzidas, cerca de 1,3 bilhões por ano. Segundo o site da empresa, “cerca de 65% das crianças no mundo receberam pelo menos uma vacina fabricada pelo instituto”.
O primeiro-ministro Narendra Modi, nacionalista e aliado de primeira de Donald Trump em oposição ao vizinho chinês, ganhou um trunfo fundamental em sua ambiciosa campanha de autossuficiência no país.