Se você for infectado e precisar de apoio médico, não há leitos nos hospitais, onde as ambulâncias e os riquixás chegam a todo momento trazendo pacientes sem conseguir respirar. Se você tiver a sorte de conseguir ser atendido e ficar em uma maca ou cadeira no corredor de um centro médico, faltará oxigênio e medicamentos.
Não é possível medir o sofrimento humano. A Itália viveu seu pandemônio há um ano. Mas há coisas feitas também por aqui. Corpos ficaram apodrecendo nas ruas de Guayaquil, no Equador, meses depois, porque o sistema funerário entrou em colapso. Manaus ficou sem ar. E aqui, em Porto Alegre mesmo, em janeiro, tive um amigo com covid-19 que, em um sábado à noite, com o oxímetro marcando abaixo de 92% saiu para procurar uma emergência, bateu em duas e não encontrou atendimento.
Mesmo assim, a Índia, arrisco dizer, vive o pior dos mundos: com todas essas realidades somadas. Ontem, o país viveu o quarto dia de recorde consecutivo de novos casos de covid-19: 349 mil infectados em 24 horas. No total, desde o início da crise, são 16,9 milhões de doentes, com 192,3 mil mortos. Há ainda o risco da subnotificação — centenas de corpos que sequer receberam atendimento médico são transportados para campos de cremação coletiva. Ou seja, não entram na conta oficial.
Não é de agora que a Índia encara sua realidade de país pobre, em desenvolvimento e com uma superpopulação de 1,4 bilhão de habitantes. No início da pandemia, o governo do conservador Narendra Modi tentou implementar o maior lockdown do mundo. Mas, a confirmar que essa medida extrema não pode ser aplicada como uma receita de bolo a servir para qualquer ocasião diante da covid-19, a ação gerou um fenômeno reverso incomum na Índia: um êxodo reverso, de pessoas que ganhavam o pão na informalidade nas megalópoles, como Nova Délhi e Calcutá, regressando em massa para o interior. Não funcionou.
O mais paradoxal de tudo talvez seja o fato de que a Índia é um dos países fabricantes de vacina _ o Instituto Serum é o laboratório responsável para produzir doses do imunizante de Oxford/AstraZeneca importadas pelo Brasil. A Índia é conhecida como farmácia do mundo, por usa capacidade de fornecer vacinas e medicamentos genéricos, mas agora, padece. Além do imunizante de Oxford, produz milhões de doses da Covaxin, mas, embora exporte seu produto, não consegue que eles atinjam o suficiente os braços dos indianos. O país aplica apenas 10,03 doses por cem habitantes, segundo a Universidade de Oxford (o Brasil, neste domingo, registrava 17,75 doses por cem habitantes).
Há várias hipóteses para a catástrofe indiana. O desmonte dos centros provisórios, passada a primeira onda, é um deles. O governo de Modi relaxou medidas de isolamento depois do fracasso do lockdown e, por sua vez, a população também baixou a guarda. O próprio sistema de saúde indiano, desde o início, apresentava déficit e não havia planos de investimentos imediatos. Some-se a isso, a exemplo do que vimos no Brasil, um território e uma população à mercê do coronavírus se tornam laboratório vivo de novas variantes. No caso indiano, a B.1.617, mais transmissível e já detectada na Europa, Austrália, África e EUA. Ou seja, a tragédia indiana não é apenas um problema indiano. Mas de todos nós.