
Uma reportagem do site de notícias Plan V, de autoria da jornalista Susana Morán, investigou as razões de Guayaquil, no Equador, ter se transformado em uma cidade com cadáveres pelas ruas em razão do colapso do sistema funerário. Conforme a reportagem “Morrendo duas vezes em Guayaquil”, vários problemas juntos levaram à crise.
A pandemia de coronavírus chegou ao país latino-americano quando já havia um surto de dengue, que lotava os hospitais. O toque de recolher fez com que funerárias trabalhassem apenas até as 14h. Soma-se a isso o medo de funcionários em lidar com corpos de vítimas do coronavírus.
Em depoimento à coluna, por telefone, Susana conta como o país vive os dias de pesadelo, no qual famílias foram obrigadas a ficar até sete dias com corpos de seus parentes dentro de casa. A seguir, a íntegra.
"Há muitas histórias que se juntaram nessa crise. Primeiro é necessário entender que o Equador é um país cujo sistema de saúde em geral é de difícil acesso, sobretudo para os setores mais pobres. O que vemos agora é reflexo da situação do sistema de saúde equatoriano, que, como todos os países da região, é debilitado. Uma doença como essa expõe a situação caótica. Já passou pela Europa e por EUA, não seria diferente no Equador. Mas aqui temos agravantes, um deles é que Guayas é uma zona costeira do Equador, que está passando por uma época de infernal: além da emergência do coronavírus também existia um grave problema de dengue. Quando começaram o contágio e as mortes nessa província o sistema de saúde já estava ocupado, sendo utilizado por um grande número de pacientes com dengue. As autoridades disseram que havia um número importante de atingidos por dengue, estatísticas às quais não temos acesso e não conhecemos. Quando começa a pandemia, ela atinge muito fortemente nessa zona. As medidas do governo foram difíceis de serem implementadas 100%, porque temos economia informal. No dia a dia, muita gente precisa sair às ruas para poder manter suas famílias. Mais de 70% dos infectados no Equador se encontram nessa província, Guayas. A isso se soma o fato de o país, há duas semanas e meia, ter tomado fortes medidas para restringir a mobilidade. Especificamente em Guaya, o toque de recolher, no início foi a partir das 19h, depois das 16h, e agora todo o país tem toque de recolher a partir das 14h. Isso faz com que muitos dos serviços funerários também deixem de trabalhar. Muitos também deixaram de operar porque tinham medo de como atender. Morreu muita gente, e ontem (quarta-feira, 1) o governo reconheceu que efetivamente há subnotificação de infectados no Equador. Muita gente sequer chegou a ter direito ao exame, e menos ainda chegou a ter atenção hospitalar ou médico. Sequer sabem se estavam ou não infectadas. Então, o problema ocorre, a situação se agrava, e elas morrem em casa. Quando morrem em casa, evidentemente as famílias buscam os serviços funerários. Desde 23 de março, as funerárias começaram a registrar maior demanda. Eles me contaram que começaram a receber muitas chamadas, muitas pessoas pedindo que lhes atendessem. Algumas (funerárias) deixaram de operar e outras atenderam unicamente famílias que tinham uma garantia, um certificado médico, que dissesse que a doença que havia provocado a morte não era coronavírus. Então muitas pessoas deixaram de receber esse tipo de serviço e ficaram com seus familiares falecidos em casa. Muita gente que tinha serviços funerários pagos, já haviam pago por espaço no cemitério, não puderam ter acesso a isso porque a demanda foi muito alta. Ao mesmo tempo, o governo anunciou que todos os mortos por coronavírus tinham de ser cremados. E os três lugares que há para cremação colapsaram. As famílias começaram a fazer fila para ter um turno para poder cremar seus parentes. E outras não receberam atenção. Todo mundo se fechou ao meio-dia, às 14h, e deixavam de funcionar. São fatores que levaram a essa situação. Também houve aumento de falecidos por causas que ainda desconhecemos se têm a ver com coronavírus ou não. Mas estatísticas mostram que, sim, há um aumento de fato. Ontem (quarta-feira, 1), o ministro da Saúde disse que estamos em um momento de crescimento da curva de contágio de forma exponencial. Vamos ter nos próximos dias um aumento forte no número de mortos e infectados em escala nacional, mas sobretudo em Guayas. Todo o sistema de saúde da cidade está colapsado a ponto de o presidente Lenín Moreno, no fim de semana, ter nomeado um ministro de Estado para que se encarregar especificamente da retirada dos cadáveres. A falta de serviços fez com que muitas famílias ficassem com seus mortos, e passaram cinco, sete dias com os mortos em casa. Até sete dias, é impressionante! Há pessoas que estavam peregrinando e expondo-se ao sair das casas para poder enterrar seus mortos. As próprias famílias tiveram de tirar os corpos para fora de casa porque já não suportavam o cheiro. E há famílias com pessoas de terceira idade, crianças, nessas casas. A única opção que encontram é tirar os corpos para a rua para ver se as autoridades agilizam um pouco ou fazem a retirada mais rápida. É uma evidência de como uma crise desse tipo pode chegar a colapsar uma região do país."