Passada a euforia da vitória do "sim" a uma nova Constituição no Chile, há um longo processo político pela frente até a elaboração da nova Carta Magna do país. O próximo grande passo será em 11 de abril de 2021, quando os chilenos deverão eleger os constituintes que deverão redigir o novo texto fundamental, que depois será colocado em votação em um novo plebiscito. Ou seja, há pelo menos um ano pela frente.
O domingo histórico que sepultou a Constituição de Augusto Pinochet é apenas o início. E, nesse caminho de maturação da democracia de nossos vizinhos latino-americanos, é importante não fazer terra arrasada.
Desde o fim da ditadura, o Chile é uma história de sucesso, com crescimento médio de 7% ao ano, estabilidade política, uma das nações mais ricas da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e modelo para o continente. Mas os protestos iniciados no ano passado mostraram também que essa pujança não chegava a muitos setores da população e se refletia em baixa qualidade do ensino público, sistema de saúde impraticável para os mais pobres, plano de aposentadoria pouco abrangente e desigualdade social. Problemas que nem a esquerda nem a direita conseguiram resolver.
Um dos desafios daqui para frente é preservar os aspectos positivos, que tornaram o Chile vitrine de desenvolvimento, e consertar os erros que afastavam a população do bolo da economia nesse rico país pobre. A Constituição que será deixada para trás quando a nova surgir traz amarras, que impedem reformas. No acesso à saúde, por exemplo: enquanto em vários países esse é um dever do Estado, no Chile é ocupada em grande parte pelo setor privado. A Carta Magna, com tons autoritários, não reconhece o imenso avanço das mulheres por igualdade, não abre questão para o debate sobre a legalização do aborto e desconhece a relevância de minorias, como dos mapuches, povo originário chileno, que habita o sul do país.
O outro desafio fica por conta de como manejar um longo processo político até a nova constituinte em meio a um país rachado pelos protestos que por vezes descambam para a violência, uma esquerda dividida e com extratos da população - idosos principalmente - com necessidades urgentes. Há ainda o risco de que nem a aprovação seja suficiente para acalmar os ânimos. Setores dos manifestantes, por exemplo, rejeitam dar ao presidente Sebastián Piñera, ele próprio contrário anteriormente à nova Constituição, o gostinho de passar à História como o grande líder reformista do país.
Tudo isso em meio a uma pandemia (com necessidades urgentes do Estado), aliada à maior crise institucional em três décadas e à incerteza de investidores externos, que só começarão a voltar com força ao Chile quando tiverem certeza de que país irá nascer com a nova Constituição. Lá em 2022. Nunca a palavra projetada no domingo na fachada de um edifício nos arredores da Plaza Itália, berço da revolução, pareceu tão apropriada: "Renace". Renascer, em português, é apenas o primeiro ato para uma nova nação.