A crítica indireta de Donald Trump à maneira como o governo brasileiro tem lidado com a crise provocada pelo coronavírus é mais um balde de água fria nos anseios de Jair Bolsonaro e do setor ideológico do governo e assessores - inclua-se aqui o chanceler Ernesto Araújo e o círculo familiar do presidente, como o filho e deputado Eduardo Bolsonaro -, de alinhamento direto aos Estados Unidos.
A essa altura, depois que Trump afirmou que “o Brasil tem um surto sério” (da pandemia), o Planalto deve estar se perguntando exatamente o que o americano quis dizer com “eles foram em outra direção que outros países na América do Sul”.
- Se você olhar os dados, você vai ver o que aconteceu, infelizmente, com o Brasil - disse o presidente americano.
“Como assim?”, deve estar pensando Bolsonaro, que seguiu a cartilha de Trump, a quem o presidente vê como exemplo, ao lidar com a pandemia.
Assim como o americano, Bolsonaro minimizou a pandemia, que já se manifestava na Ásia e Europa. Depois, desdenhou das evidências científicas que confirmavam o poder devastador da covid-19 ("uma gripe". Na sequência, comprou, sem críticas ou uma saudável dose de ceticismo que fosse, a versão da Casa Branca de que o “vírus chinês” (ou "comunavírus", nas palavras do chanceler Araújo) é parte de um complô orquestrado por Pequim para dominar a ordem mundial pós-pandemia segundo seus interesses.
Trump e Bolsonaro radicalizaram semelhanças durante a pandemia: no mesmo final de semana em que o brasileiro compareceu a uma manifestação a favor da ditadura e defendeu a abertura imediata da economia, Trump incentivou carreatas por todo o país de manifestantes que bradavam “Liberate” (Libere) e “Free Land” (Terra livre) contra as medidas de isolamento social. Também ambos jogaram suas bases populares contra os governadores e líderes dos parlamentos.
A fala desta terça-feira (28) de Trump ocorreu no contexto de uma conversa com o governador da Flórida, Ron De Santis, no Salão Oval da Casa Branca. O presidente perguntou se ele queria que os voos do Brasil fossem cortados. De Santis disse que não, mas que está defendendo que as companhias aéreas testem os passageiros. Trump disse que está discutindo com governadores a possibilidade de suspender rotas da América Latina. Três dos únicos quatro voos que estão sendo operados entre EUA e o Brasil partem da Flórida.
Na comparação com os Estados Unidos, o Brasil está longe de qualquer equiparação. Os americanos passaram de 1 milhão de casos de coronavírus com 57,8 mil mortos. O Brasil registra 71,8 mil infectados e 5.014 óbitos. Na comparação com os vizinhos da América do Sul, nosso país desponta, pagando o preço de ser a maior nação do subcontinente e com uma conexão aérea intensa com outras capitais do planeta - o que, infelizmente, acaba disseminando o vírus. Mas, apesar dessas diferenças, a frase de Trump é reducionista no sentido em que, mesmo a América do Sul não tem uma única política de combate ao vírus. Há países com fortes medidas de isolamento social e fechamento de fronteiras, como a Argentina e Peru. E outros com ligeira flexibilização. O Brasil comporta dentro de seu território desde um Equador (com cenas dantescas de colapso do sistema funerário, como as que vimos em Manaus) até um Chile, onde a curva de contágio foi achatada (como em Porto Alegre).