Tudo começa quando Jeff Sharlet, um jovem americano, vai parar em uma espécie de irmandade na Virgínia, arredores de Washington. Entre promessas e provas de suposta lealdade na fraternidade, os jovens fazem trabalhos domésticos na casa dos anos 1950 e estudam a Bíblia – não necessariamente toda a obra sagrada dos cristãos, mas uma edição especial, bem menor, que extingue a maioria dos livros, deixando apenas os quatro Evangelhos e os Atos dos Apóstolos, renomeado de Atos dos Embaixadores. Na capa preta do resumo, há apenas uma palavra, Jesus.
É nos jantares de gala realizados na residência de Ivanwald que Sharlet, aos poucos, reconhece nos frequentadores altas autoridades: juízes, procuradores, congressistas. Começa a se descortinar, para o jovem e para o espectador, que a casa não é apenas um grupo voltado a jovens cristãos. O objetivo é muito maior.
The Family – Democracia Ameaçada, série documental que estreou na Netflix há duas semanas, é inspirada no livro The Family: The Secret Fundamentalism at the Heart of American Power e fruto de uma investigação jornalística de Sharlet, o jovem que, marcado pela experiência na fraternidade, dedicou-se a decifrar os meandros daquela sociedade “quase” secreta. Quase porque a família tem nome, The Fellowship Foundation, e página na internet, mas opera nos bastidores para influenciar a política americana e global. A discrição sobre sua existência e como opera deve-se em grande parte aos ensinamentos de seu mentor intelectual: Doug Coe, o líder do grupo, morto em 2017. “Quanto mais invisível sua organização for, mais influência ela terá”, pregava.
Ao longo de cinco perturbadores episódios, é natural que se pense que tudo não passa de teoria da conspiração, mas a realidade é jogada nos olhos do espectador por vídeos e fotografias históricas. Estamos acostumados a ver personalidades como Richard Nixon, Jimmy Carter, Ronald Reagan, Bill Clinton, George Bush pai e filho e Barack Obama cercados por várias pessoas, mas dificilmente nos dedicamos a entender quem são. The Family faz isso por nós, lança lupa em encontros, apertos de mãos, conversas ao pé do ouvido.
É incrível, nas imagens, reconhecer a onipresença de algum membro da irmandade ao lado, à frente ou um pouco atrás de praticamente todos os presidentes americanos da segunda metade do século 20. Uma das formas de influenciar a política americana é por meio do National Prayer Breakfast, encontro anual da confraria em que todos os presidentes americanos, desde Dwight Eisenhower, discursaram – inclusive Donald Trump.
Aos poucos, percebe-se como a família estendeu também seus tentáculos para além da Casa Branca e do Capitólio. Duas das negociações mais importantes da diplomacia teriam a bênção do grupo. A primeira foi o acordo de paz entre o primeiro-ministro de Israel Menachem Begin e o ditador egípcio Muhammad Anwar Al Sadat, em 1979, com a mediação de Jimmy Carter. A segunda, a reaproximação entre Muamar Kadafi e o Ocidente. O ditador líbio, tratado como terrorista desde o atentado contra o voo da PanAm sobre a cidade escocesa de Lockerbie, em 1988, virou queridinho dos Estados Unidos e da Europa ao entregar dois cidadãos de seu país 11 anos depois. De pária internacional, Kadafi virou parceiro comercial – isso, é claro, até a guerra civil de 2011. Parte daquela negociação, até hoje mantida sob segredo, é desvelada na série – e tem o dedo da família.
Boa parte do poder da organização só veio à tona porque o então governador da Carolina do Sul, Mark Sanford, deu com a língua nos dentes. Envolvido em um caso extraconjugal, agradeceu publicamente o apoio da confraria. Acabou contrariando o primeiro mandamento de Doug Coe: discrição e silêncio.
De uns anos para cá, The Fellowship teria encontrado em Trump o “homem de Deus” para operar sua ganância por poder e influência. O atual presidente americano, segundo os autores da série, tem o gabinete mais fundamentalista da história do país, com membros ligados à confraria: o vice-presidente, Mike Pence, o secretário de Estado, Mike Pompeo, a secretária da Educação, Betsy DeVos, e, até pouco tempo atrás, o chefe do Departamento de Justiça, Jeff Sessions. Em um dos discursos, Sessions tentou justificar a separação de pais e filhos de imigrantes ilegais na fronteira com o México, usando a passagem bíblica de Romanos 13: “Obedecerás leis do governo porque Deus designou o governo”.
A série é realizada por Jess Moss e produzida por Alex Gibney, o mesmo do documentário The Inventor: Out for Blood in Silicon Valley. Ao final de The Family, você pode ver tudo como uma conspiração – afinal, seus líderes negam tamanha influência mundial –, mas, em um mundo onde religião e Estado parecem cada vez mais próximos, como em outros momentos da História da humanidade, sairá da frente da TV, no mínimo desconfiado de que, acima do poder, existe um poder maior.