Poucos assuntos mexem tanto com os brios de muitos brasileiros quanto o olho grande de governos e outros atores externos sobre a Amazônia. Explorado pelo regime militar ("A Amazônia é nossa") e pela esquerda (contra o imperialismo), o tema da soberania nacional sobre a floresta une os dois polos de um país rachado ideologicamente. Mas o que está em debate quando se fala em internacionalização da Amazônia, assunto que voltou à tona a partir do pronunciamento do presidente francês, Emmanuel Macron, no G7?
— Associações, ONGs e também certos atores jurídicos internacionais levantaram a questão de saber se é possível definir um status internacional da Amazônia. Não é o caso de nossa iniciativa hoje, mas é um verdadeiro caso que se coloca se um Estado soberano tomasse de maneira clara e concreta medidas que se opõem ao interesse de todo o planeta. Há todo um trabalho jurídico e político a ser feito — sugeriu Macron.
Frases semelhantes já foram ditas no passado. Em 1989, o então senador democrata Al Gore, antes de se tornar candidato derrotado por George W. Bush, em 2000, e arauto do ambiente com o documentário "Uma Verdade Inconveniente", afirmou:
— Ao contrário do que os brasileiros pensam, a Amazônia não é deles, mas de todos nós.
No mesmo ano, outro presidente francês (para os adeptos das teorias conspiratórias, um prato cheio), François Mitterrand, declarou:
— O Brasil precisa aceitar uma soberania relativa sobre a Amazônia.
Em 2001, a foto de um suposto livro didático americano circulou na internet mostrando o mapa da Amazônia como território internacional. A imagem constou até do clipping distribuído pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e obrigou a Embaixada do Brasil nos EUA a apontar a fraude. Em 2001, eu e o repórter Humberto Trezzi escrevemos uma reportagem de capa de ZH mostrando que os americanos contabilizavam à época 20 bases na América Latina. Não faltou quem visse nas unidades tentáculos dos Estados Unidos para se apossar da floresta.
No debate, estão postos princípios caros às relações internacionais. Os elementos essenciais para a formação de um Estado são território, população e soberania garantida por meio de leis e do estabelecimento de suas fronteiras. Ora, as fronteiras do Estado brasileiro, mesmo na densa e por vezes porosa Amazônia, estão definidas e são reconhecidas pelos pares _ ou seja, outros países. Logo, pelo princípio da soberania, o que ocorre na Amazônia é de responsabilidade do Brasil — para o bem e para o mal. Então, cada país pode fazer o que quiser com seu território — inclusive permitir queimadas e desmatamentos?
Não é tão simples assim. Desde 2005, acadêmicos e estadistas discutem o princípio da responsabilidade de proteger. Endossado pelas Nações Unidas em 2005, baseia-se na premissa de que soberania implica responsabilidade de defender todas as populações de violações aos direitos humanos. Esse princípio serviu como argumento para o ataque à Líbia, em 2011, quando o ditador Muamar Kadafi usava navios e aviação contra seus cidadãos. Poderia ser usado para o caso de uma tragédia ambiental, se um Estado não fizer o suficiente para preservar uma floresta como a Amazônia? Não há consenso entre pesquisadores e policy makers.
Até porque há outra discussão também importante: a defesa de que temas globais devem ser tratados de forma transnacionais. A destruição do ambiente e fluxos migratórios dizem respeito a todo o planeta: uma fábrica poluente na China contamina o ar que todos respiramos. Ou uma crise na Venezuela produz onda migratória com efeitos em nações vizinhas. Daí a criação de regimes internacionais sobre mudanças climáticas, estatuto do refugiado e outros.
Causou surpresa um texto publicado no último dia 5 na revista Foreign Policy, assinado pelo professor de Relações Internacionais em Harvard Stephen Walt. O artigo começa com um trecho hipotético — uma epifania para, mais uma vez, os adeptos das teorias conspiratórias. Em 2025, um presidente americano dá um ultimato ao Brasil: se o desmatamento na Amazônia continuar, ordenará ataques aéreos contra o país. O título inicial do texto era "Quem vai invadir o Brasil para salvar a Amazônia?". Após alguma polêmica, foi trocado para "Quem vai salvar a Amazônia (e como)?". O professor culpou os editores da revista pelo título original. Chamou a atenção que, menos de duas semanas depois, a soberania da Amazônia era questionada por Macron.
Não há na história exemplos bem construídos de status internacional de territórios. O mais próximo a isso seria a discussão sobre Jerusalém. Na resolução 181 das Nações Unidas, que tratou da divisão da Palestina, a Cidade Sagrada não deveria pertencer a nenhuma das partes, mas ser desmilitarizada e colocada sob controle internacional. Em 1950, Israel declarou Jerusalém sua capital. Na Guerra dos Seis Dias, em 1967, conquistou a parte oriental da cidade. Em 1980, o parlamento israelense declarou a cidade inteira capital indivisível de Israel. O Conselho de Segurança da ONU invalidou a anexação através da Resolução 478. Até hoje, o tema não está resolvido.
Outro exemplo são os protetorados. Após a I Guerra, Reino Unido e França mantiveram o controle de regiões no Oriente Médio: os atuais Iraque, Palestina, Israel e Jordânia ficavam sob mandato britânico, enquanto franceses controlavam áreas onde hoje são Síria e Líbano. Volta e meia o tema surge de novo como sugestão para o status de Jerusalém Leste.
Como se vê, nem um dos temas mais espinhosos da geopolítica foi resolvido assim, com o canetaço da internacionalização.