É com indignação que a comunidade judaica no Rio Grande do Sul recebeu a declaração de um integrante do governo da Alemanha que aconselhou os judeus no país a não usar o quipá em público, item religioso do vestuário que homens da religião usam na cabeça. A declaração do comissário de antissemitismo do país, Felix Klein, foi feita diante do aumento de ataques antissemitas. Segundo a Deutsche Welle, entre 2017 e 2018, as agressões desse tipo aumentaram 10%.
— Esse tipo de manifestação nos preocupa, porque os líderes de um Estado têm de garantir o direito das minorias. Dizer que não convém sair à rua dessa forma (usando o quipá) é bastante agressivo e choca — afirma Sebastian Watenberg, presidente da Federação Israelita do Rio Grande do Sul.
O representante participa a partir de domingo do America Jewish Commitee, um dos principais congressos de autoridades judaicas do mundo, realizado em Washington. Segundo ele, o aumento do antissemitismo será um dos temas do encontro. A seguir, trechos da entrevista concedida à coluna.
Como a comunidade judaica gaúcha recebeu o conselho do governo da Alemanha sobre não usar o quipá?
O antissemitismo tem crescido absurdamente nos últimos tempos, inclusive com atos de violência concreta. Não é mais antissemitismo ideológico, no Facebook ou verbalmente. Tem descambado para a violência física, e isso nos preocupa. Hoje, a gente sofre antissemitismo de três frentes: primeiro, da extrema-direita, que é a principal responsável por esses ataques na Europa. Em segundo lugar, na Europa, a gente tem o antissemitismo do Islã radical. E, em terceiro, mais sensível na América Latina, é de alguns setores progressistas, via movimentos de deslegitimação do Estado de Israel. Usando um jogo de palavras, dizendo: "Não sou contra os judeus, sou contra o Estado de Israel". Esse tipo de manifestação (do integrante do governo alemão) preocupa, porque os líderes de um Estado têm de garantir o direito das minorias, sejam elas judeus, movimento LGBT ou negros. Dizer que não convém sair à rua dessa forma (usando o quipá) é bastante agressivo e choca. Não podemos dizer para nossos religiosos: "Não vai dar mais para sair à rua dessa forma". É mais ou menos o que a gente passa aqui em relação à violência: "Olha, vai lá, mas não leva a bolsa". As pessoas têm de ter sua vida dentro da normalidade e ter sua normalidade respeitada. Jamais o líder de um governo pode intimidar. Posso até dizer para não saíres com uma bolsa, mas não espero que um governador vá a público dizer que tu não deves sair com uma bolsa.
Vocês consideram esse conselho um ataque à liberdade religiosa?
O ponto principal é que essas lideranças têm de assegurar essas garantias, custe o que custar. Isso é um pilar do Estado democrático de direito, o direito das minorias. E as minorias têm de se apoiar. Estive no Supremo para assistir ao julgamento da criminalização da LGBTfobia, uma causa que a gente apoiou. Em 2003, tivéssemos a mesma demanda, fizemos com que antissemitismo fosse considerado forma de racismo. Mas é lamentável que a gente tenha de recorrer ao Supremo porque os nossos legisladores, nossos governos, não fornecem garantias suficientes para as minorias viverem pacificamente.
Deixar de usar o quipá significa ceder à ideologia do agressor?
O terrorista, para além das mortes, visa desestabilizar, tirar uma comunidade de sua rotina. Incutir o medo e, por meio dele, fazer com que aquela pessoa deixe de ser o que é ou o seja apenas dentro de casa para não agredir o seu conceito de como essas pessoas acham que se deve viver em sociedade. Esse é um ponto muito grave. Há uma cultura de proteção às minorias muito ruim em nosso país e, como regra gral, no mundo. A gente procura agir somente quando há casos de violência, como resposta.
O fato de esse conselho surgir na Alemanha tem uma carga simbólica forte: pelo passado nazista e por ser hoje um dos países que mais respeitam os direitos humanos.
Sem dúvida. E um país que é extremamente conhecedor de sua história e que faz questão de se lembrar dela. Tenho certeza de que esse sujeito (comissário de antissemitismo do país, Felix Klein) não representa o pensamento da Angela Merkel (chanceler). Ela não deve ter gostado da declaração. Nenhum líder pode gostar quando alguém fala em nome de um país dizendo que minorias não podem viver de forma tranquila. A Alemanha se esforça muitíssimo para manter viva a memória do que aconteceu (Holocausto) e educar as gerações para que isso não se repita.
Já temos a violência urbana, ainda por cima, vou ter de cuidar a violência religiosa? No Brasil, que nunca se caracterizou por esse tipo de situação, seria terrível.
SEBASTIAN WATENBERG
Presidente da Federação Israelita do Rio Grande do Sul
Um dos motivos alegados pela autoridade seria a imigração, para a Alemanha, de pessoas de países de maioria muçulmana. Isso não é xenofobia às avessas?
Em fóruns internacionais é discutido bastante. A Europa tinha a ideia de que ao chegar ao continente, esses imigrantes se ocidentalizariam. O grande dilema da Europa é ver que, 10, 15 anos depois do início dessas ondas migratórias, não houve a ocidentalização dessas pessoas. Houve, ao contrário, uma sensação mais forte de querer se fechar, de manter sua cultura original, chegando ao ponto de haver problemas. Há vídeos que mostram bairros em Londres onde mulheres são hostilizadas por andarem de calça ou usando decote, porque se tratam de regiões de presença majoritariamente muçulmana. Cabe também ao Estado garantir tanto a liberdade da comunidade muçulmana quanto o respeito a outras comunidades. Mas esse multiculturalismo que todos nós apoiamos, na prática, tem sido difícil. É o grande desafio desse momento. Não somos contra nenhum tipo de onda migratória. Ao contrário, temos de entender como as sociedades devem viver pacificamente em seus mais diversos grupos. Esse é o papel do Estado, garantir que isso aconteça. Só que, na Europa, o sucesso não tem sido muito alto. Até porque, quando fala em proteger minorias, aflora um sentimento. A velha tentativa de resgate dos grandes valores nacionais tem tido uma tônica bastante preocupante. A gente sabe que começa de forma lenta e acaba descambando para violência contra grupos.
Medidas como essas podem se estender para o Brasil? Alguém imaginar que é melhor não sair à rua com o quipá para evitar ser agredido?
O antissemitismo também ocorre no Brasil. Há casos na Argentina, agressões a rabinos. Se eu andar pela rua, ninguém me reconhece como judeu. Me visto como qualquer outra pessoa. Agora, uma pessoa que usa um quipá é diferente. Muitas judeus, inclusive no Brasil, tem passado a usar boné ao sair à rua, uma alternativa possível. Apesar de eu achar que não devemos ceder a essas pressões nem a esse tipo de preocupação.
Boné para esconder o quipá?
Não, em lugar do quipá. Na verdade, (a orientação religiosa) é ter a cabeça coberta.
Qual o significado do quipá na religião judaica?
Há diversos significados filosóficos. Não é só um símbolo de identificação. Ele marca, na filosofia, onde termina o eu... Acima daqui (cabeça), só Deus. Mostra as limitações do ser humano. A orientação é cobrir a cabeça. Os ultraortodoxos usam quipá e, em cima dele, ainda utilizam o chapéu. Cada corrente tem uma forma diferente. Os judeus mais orientais usam um quipá grande. Não há modelo único. Teoricamente, se andasse sempre de boné estaria dentro da norma. Mas seria lamentável termos de retroceder a uma situação onde tenho medo. Já temos a violência urbana, ainda por cima, vou ter de cuidar a violência religiosa? No Brasil, que nunca se caracterizou por esse tipo de situação, seria terrível.