Encravadas na subida do Morro do Osso, no bairro Tristeza, em Porto Alegre, as carcomidas lápides de pedra, revestidas de limo que quase ocultam a estrela de Davi, são um marco da relação dos judeus com o Rio Grande do Sul. Ali, estão sepultados cerca de 70 judeus. O contador Flávio Lermann, presidente do Centro Israelita, é o guardião do cemitério, fundado em 1932. O primeiro túmulo é anterior à inauguração: de 1926, onde estão os restos mortais de Leão Bonder. Alguns dos mortos ali depositados são migrantes da primeira leva que chegou ao Brasil, em 1904.
– Queremos transformar esse local em patrimônio histórico – diz Flávio, enquanto abre o cadeado dos portões do cemitério.
A história dos judeus no Brasil começou 44 anos antes da fundação do Estado de Israel. Fugidos do Império russo, onde eram perseguidos, os primeiros viajantes desembarcaram no Rio Grande do Sul em 1904, graças ao projeto do banqueiro Barão Maurício de Hirsch, que criou a Jewish Colonization Association (ICA). Depois de atuar por mais de 10 anos enviando judeus a EUA, Canadá e Argentina, a ICA decidiu investir em um assentamento agrícola no Brasil. Em 1900, uma comissão esteve no Estado para examinar as possibilidades de assentamento. Na mesma época, o governo, presidido por Borges de Medeiros, começou a promover incentivos fiscais para a recolonização e a retomada da produção agropastoril dos campos gaúchos, ainda encharcados pelo sangue da Revolução Federalista de 1893.
As 38 famílias, quase 300 pessoas vindas da Bessarábia (região situada entre a Romênia e o Império Russo), estabeleceram-se na Colônia Philippson, então área de Santa Maria. Em 1909 e 1910, a ICA adquiriu a fazenda Quatro Irmãos. Outros núcleos foram criados, como Barão Hirsch, que recebeu em 1926 em torno de 50 famílias da Lituânia e da Polônia. Uma nova onda migratória veio com a perseguição nazista, entre 1933 e 1941.
– Chama atenção a questão da educação. Os caras fundaram uma escola na colônia de Philippson. É uma marca até hoje. A primeira coisa quando chegaram foi pensar: “Vamos fazer uma escola”. A gente até pode estar na miséria, mas o pessoal não vai ser burro, era o que imaginavam – lembra o presidente da Federação Israelita do Rio Grande do Sul, Sebastian Watenberg.
O valor da educação – que resultou em projetos como o Colégio Israelita Brasileiro, de Porto Alegre, fundado em 1922 – está ligado à contribuição para a formação da cultura gaúcha e brasileira. Membro Academia Brasileira de Letras, o escritor Arnaldo Niskier destaca grandes autores de origem judaica, como o gaúcho Moacyr Scliar, e traduções para o português de escritores israelenses como Amós Oz e o Prêmio Nobel da Paz Elie Wiesel.
– Eles deram vida a essa relação amistosa e simpática entre os dois povos – avalia Niskier, para quem essas personalidades contribuíram ao comprovar que a convivência pacífica entre Israel e povos árabes é possível.
A escritora Cíntia Moscovich, de família vinda na segunda geração de migrantes, lembra que a literatura judaica está arraigada aos costumes gaúchos. Ela explica que, em cada casa de judeu, há uma cuia de chimarrão e um samovar. O utensílio usado para aquecer água e servir chá, para muitos judeus, era uma das únicas peças de valor que conseguiam trazer para o Brasil, na fuga, na expectativa de angariar algum dinheiro na nova pátria.
– É um encontro simbólico, do samovar com o chimarrão. Os judeus que vieram ao Rio Grande são tão gaúchos que é difícil dizer onde acaba uma coisa e começa outra. Lembro da minha vó tomando chimarrão e comendo bala de menta – conta.
O Estado abriga a terceira maior comunidade brasileira de judeus – são 12 mil, a maioria morando em Porto Alegre. As maiores populações estão em São Paulo (60 mil) e no Rio de Janeiro (30 mil). Há 120 mil judeus no Brasil. O Rio Grande do Sul tem 11 sinagogas, sete delas em Porto Alegre e outras quatro no Interior (em Erechim, Santa Maria, Passo Fundo e Pelotas).
Na Sociedade Israelita Brasileira de Cultura e Beneficência (Sibra), localizada na Rua Mariante, na Capital, o grupo Kadima é responsável por perpetuar a cultura judaica da dança. Os professores Lucas Schwetz e Amanda Mattos e o irmão dele, Bruno, dizem que as coreografias remontam à tradição das danças de roda, quando a comunidade se reunia nos finais de tarde no kibutz. Os três não são religiosos, mas enxergam na dança uma forma de valorizar a cultura em conexão com os brasileiros.
– Mesmo se eu for para outro país e não souber falar a língua desse país, vou saber dançar. É nossa forma de se aproximar – diz Lucas.
Em Israel, vivem cerca de 20 mil brasileiros. A aliá (imigração) brasileira para Israel passa por seu momento mais robusto desde a criação do país, em 1948. Historicamente, a média de brasileiros que escolhia morar em Israel era de 150 a 200 por ano. Desde 2014, o número vem aumentando.