O aplicativo de trânsito Waze, o método de irrigação por gotejamento e o tomate-cereja são invenções israelenses. Aterrissei no Aeroporto Ben Gurion, em 25 de novembro passado, desconhecendo a procedência dessas criações. Mas a ignorância sobre esse legado tecnológico – repetido à exaustão aos turistas – que estufa de orgulho os habitantes do diminuto país do Oriente Médio é anedótica se comparada ao que eu sabia, ou pensava saber, sobre um dos mais complexos e controversos territórios do planeta. Conhece-se muito de um lugar ao se pisar nele, mas se tem a clara e angustiante impressão de que esse aprendizado é ainda irrisório quando se embarca de volta, 18 dias e duas centenas de horas/aula e atividades de um curso de imersão depois, se o local em questão é Israel, seus 20 mil quilômetros quadrados – extensão comparável à do menor Estado brasileiro, Sergipe – e 9 milhões de habitantes.
Por recomendação dos organizadores do programa de que participaria, minha mala continha roupas de meia-estação para um quase inverno entre 12ºC e 19ºC, um guarda-chuva para a época em que o solo estorricado do deserto enfim enxerga alguma água e um par de tênis para as muitas saídas de campo. Tudo foi ostensivamente revirado na escala em Barcelona, na Espanha, quando a chave do cadeado da bagagem que despachei em Porto Alegre foi solicitada para uma inspeção, e eu, após ouvir meu nome numa pronúncia tortuosa em um alto-falante de El Prat, me submeti a um detalhado interrogatório. Com luvas de látex, uma agente verificava o conteúdo da minha mochila quando dois guardas entraram na sala onde estávamos, um deles com uma arma pesada a tiracolo.
– Não é ela. Podem ir – dispensou-os a funcionária, voltando a examinar bolachas integrais e barras de cereal, enquanto eu experimentava um intenso alívio por me livrar de uma suspeita que nem sabia ter recaído, em algum momento, sobre mim.
Estava aí a primeira lição prática do curso, antes mesmo do destino final: a segurança nacional é uma obsessão israelense. Trata-se de um tema tão delicado que respinga em um dos valores mais caros à democracia: a liberdade de imprensa. Uma nação que se apresenta como progressista – Tel Aviv é um famoso destino LGBT+, sediando uma das maiores paradas gays do mundo, e permite o aborto – obriga seus jornalistas a enviarem suas reportagens, ainda que textos muito críticos sejam permitidos, a uma leitura prévia do Exército antes da veiculação, para que nenhuma informação se transforme em munição para o inimigo. Por exemplo, é improvável que uma matéria aponte a localização exata da queda de um míssil. Ao escrever que a explosão ocorreu a cem metros de determinada escola, o relato estará fornecendo elementos para que a artilharia do oponente aprimore sua mira no próximo ataque.
Instalada em Kfar Saba, subúrbio de alto padrão da capital, observava do terraço do alojamento universitário, no campus de Beit Berl, as luzes da cidade palestina de Qalqilya, na Cisjordânia – território crivado de checkpoints do Exército no qual há três níveis de autonomia da Autoridade Nacional Palestina (ANP), por onde avançam os assentamentos ilegais de colonos judeus. Moradores precisam de autorização para sair da Cisjordânia em seus deslocamentos diários até o trabalho, em Israel.
Existe a noção de que aqui todo mundo está querendo se matar o tempo todo. Não é assim. Ouso dizer que, em 99% do tempo, as pessoas e as religiões coexistem. O 1% é o que vira notícia.
DANIELA KRESCH SHAHAR
Jornalista
O Exército classifica como perigosa e não recomenda a entrada de israelenses judeus em cidades palestinas como Belém e Ramallah. Isto é Israel: um território recortado, marcado por divisas de concreto e metal, onde tudo e todos estão muito próximos, às vezes misturados, noutras com apenas duas dezenas de metros separando um município de maioria judaica de outro com população palestina israelense. Incrível pensar que etnias tão distintas coexistem no dia a dia mas carregam a ânsia milenar de se tornarem donas incontestes de uma terra que nunca conheceu paz firme e duradoura.
Sob diversos aspectos, ninguém fica imune a Israel, onde os guias turísticos carregam Bíblias para abastecer suas explanações. A prova está nas visitas a Jerusalém, onde esta repórter, sem apego a qualquer religião, sentiu o fluxo de uma energia diferente,
quase palpável, de que tanto se fala. Alguém não apenas “vai” a Jerusalém, mas “eleva-se” a Jerusalém, nos sentidos geográfico – são mais de 700 metros de altitude – e espiritual do termo. Encanta também, em todas as cidades com muçulmanos, o chamado do almuadem, que ecoa desde as mesquitas, convocando os fiéis para os cinco momentos diários de preces.
Uma das incursões que meu grupo fez pela Cisjordânia foi a bordo de um ônibus blindado. A placa israelense, explicou o professor Guil Novick, judeu argentino, tornava-nos um alvo em potencial – visto bem de perto, o vidro das janelas exibia ranhuras resultantes de tiros e pedradas, contou o motorista Binyamin, com uma arma na cintura. Na janela traseira do coletivo, desfraldava-se a bandeira nacional, algo que, pelas estradas palestinas, poderia ser interpretado como provocação.
Para a nativa de um país de dimensões continentais, nada é longe. Alcança-se qualquer destino, para cima ou para baixo no mapa, em menos de três horas. Visitamos as fronteiras com o Líbano e a Síria. Passamos por Metula, quase no território libanês, na mesma semana em que militares lançavam a operação Escudo do Norte, com o objetivo de neutralizar túneis cavoucados pelo Hezbollah em direção a Israel. A agências de notícias, habitantes locais relataram sentir o chão vibrar devido às escavações. No sul, fomos até o terminal de fronteira de Erez, que leva à Faixa de Gaza, por onde cruzam cerca de mil pessoas por dia para cada lado, entre doentes, diplomatas, jornalistas e comerciantes, à exceção de israelenses. Há fotos e homenagens a quatro mortos em um atentado perpetrado por uma mulher-bomba a serviço do Hamas em 2004: assistimos ao impactante vídeo das câmeras de segurança em que ela, chorando ao tirar as peças de roupa durante a revista, aciona o dispositivo letal amarrado à perna. Shlomo Tazaban, diretor do posto, tranquilizou-nos quando tiros foram ouvidos:
– É normal aqui.
Escutar o zunido e avistar os drones da inteligência israelense, fotografando tudo, também é comum. Fora a presença ostensiva do Exército – venerado pela população e com serviço obrigatório para todos os cidadãos, incluindo as mulheres –, pode-se dizer que, quando não há bombardeios, Israel é um país seguro.
– Não dizemos “paz a qualquer preço”, e sim “segurança a todo preço” – frisou um oficial da reserva do Mossad, o serviço secreto.
(Aparte relevante: os israelenses se orgulham da excelência de seu sistema de educação, que inspirou 12 ganhadores de prêmios Nobel e hoje é um nascedouro fértil de startups, mas não sabem lidar com a proliferação absurda de gatos – considera-se até a exportação deles, acredite – e a separação do lixo.)
No último verão, o país, uma das maiores potências militares e nucleares da Terra, penou com uma estratégia quase rústica: teve de combater incêndios vultosos provocados por mais de 1,2 mil pipas incendiárias. Balões, feitos até com camisinhas, eram soprados pelo
vento do Mediterrâneo desde a Faixa de Gaza para o interior de Israel e explodiam ao pousar, provocando fogo na vegetação seca sob o calor que chegava a 50ºC.
Dias antes do meu desembarque, uma ofensiva do Hamas rompeu o eficiente Domo de Ferro, sistema antimísseis das forças de defesa. Ecoaram sirenes e alertas vermelhos, dando início à movimentação a que todos, de certa maneira, estão habituados. Dependendo da região onde você estiver, varia a quantidade de segundos ou minutos de que dispõe para alcançar o bunker mais próximo. Estive em um ponto onde o tempo máximo para escapar era de 15 segundos. Cachorros tomam calmantes e crianças grandes urinam na cama, dada a constante tensão.
No sul – que se considera menos protegido pelo governo em relação a outras áreas, especialmente Tel Aviv –, paradas de ônibus têm, ao lado, um abrigo de concreto para que os passageiros se refugiem o mais rápido possível em caso de emergência. A poucos passos da Faixa de Gaza, uma das regiões mais densamente povoadas e depauperadas do planeta, questionei o coordenador do curso sobre como deveríamos proceder se ocorresse um ataque. Sergio Gryn, outro judeu argentino, apontou na direção de um muro:
– Corra para lá, deite no chão, cubra a cabeça com as mãos. Não há muito mais que se possa fazer.
Nunca pensei em sair daqui. Eu moro aqui. Aqui meus filhos nasceram. Aqui é minha casa. Você sairia da sua casa? Não estou aqui para resistir, estou aqui para existir.
NATAN GALKOWICZ
Brasileiro que perdeu a filha, atingida por um morteiro, próximo à Faixa de Gaza
Perto dali conversamos com Natan Galkowicz, brasileiro que viveu 27 anos em São Paulo e perdeu a filha Dana em 2005, vítima de um morteiro – um cano preenchido com pólvora – no moshav (espécie de condomínio de casas) Netiv HaAsara, onde se lê a frase “Path to peace” (“caminho para a paz”, em inglês) na entrada. Dele ouvi duas das declarações mais impactantes de toda a viagem.
– Nunca pensei em sair daqui. Eu moro aqui. Aqui meus filhos nasceram. Aqui é minha casa.
Você sairia da sua casa? Não estou aqui para resistir, estou aqui para existir – afirmou calmamente, quase como se recitasse uma obviedade, quando questionado por que permanece em uma zona tão vulnerável.
Sobre o perigo de se estar em Israel, algo de interesse de todo o grupo de 25 jornalistas que o rodeava, Natan advertiu:
– Não é que o risco aqui é maior ou menor. Antes vocês estavam correndo risco. Aonde vocês vão almoçar daqui a pouco vocês vão estar correndo risco também.
Daniela Kresch Shahar, jornalista brasileira, definiu bem a visão estereotipada dos conterrâneos sobre Israel: país dominador, conservador, extremamente religioso, militarizado, sem opiniões divergentes, com um povo agressivo e rude. Trata-se de Israel, opressor e rico, a encarnação do mal, versus palestinos, oprimidos e pobres, os intérpretes do bem. Não é isso, frisou ela. Concordo em parte.
– Existe a noção de que aqui todo mundo está querendo se matar o tempo todo. Não é assim. Ouso dizer que, em 99% do tempo, as pessoas e as religiões coexistem. O 1% é o que vira notícia – acrescentou Daniela.
Baseada no pouco que vi e senti, concordo plenamente.
*A repórter viajou como bolsista do programa Meios de Comunicação para a Paz em Zonas de Conflito, promovido pelo Ministério das Relações Exteriores de Israel e pelo Instituto Internacional de Liderança – Histadrut