Imagens de venezuelanos se alimentando de comida recolhida em caminhão de lixo ou brigando por água em dutos do esgoto pluvial são cenas de um país que se liquefaz a cada dia. Menos conhecidas são as estatísticas que fazem da Venezuela essa nação à beira do colapso.
O desconhecimento por parte do mundo sobre o que ocorre dentro das fronteiras do reino de Nicolás Maduro deve-se à maquiagem de dados oficiais e à dificuldade de acesso ao país pelos pesquisadores.
Por si só o relatório divulgado nesta quinta-feira (4) em nível global pela Human Rights Watch, em parceria com dois centros de pesquisa da Faculdade Bloomberg de Saúde Pública da Universidade Johns Hopkins, em Washington, já seria um documento esclarecedor sobre o drama da nação latino-americana. Mas é mais do que isso: as 71 páginas de um dos mais completos e independentes estudos sobre a tragédia humanitária na Venezuela é um tapa na cara de nós todos como sociedade humana. Intitulado Emergência Humanitária na Venezuela: Resposta da ONU em Grande Escala é Necessária para Enfrentar a Crise de Saúde e Alimentos, o estudo oferece dados dramáticos sobre aumento de mortalidade materna e infantil, disseminação de doenças preveníveis com vacina, como sarampo e difteria, e surtos de doenças infecciosas, como malária e tuberculose, no país de Maduro.
Fome, desnutrição e escassez de alimentos são generalizadas. Em 2018, a agência da ONU para Alimentação e Agricultura, a FAO, indicou que, entre 2015 e 2017, quase 12% da população venezuelana – 3,7 milhões de pessoas – estava subnutrida, em comparação com menos de 5% entre 2008 e 2013. Pesquisas não oficiais revelaram que a maioria das famílias venezuelanas enfrenta insegurança alimentar e que a desnutrição aguda moderada e grave em crianças menores de cinco anos é assustadoramente alta.
– O sistema de saúde está em colapso total, o que, somado com a escassez generalizada de alimentos, está aumentando o sofrimento e colocando ainda mais venezuelanos em risco – afirma Shannon Doocy, uma das professoras que conduziu pesquisas na fronteira da Venezuela.
A Human Rights Watch convoca o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, a elaborar um plano de resposta humanitária abrangente.
– Não importa o quanto tentem, as autoridades venezuelanas não podem esconder a realidade no terreno – diz Shannon.
Segundo a entidade, Guterres, deveria declarar oficialmente que a Venezuela está enfrentando uma “emergência humanitária complexa”, termo próprio da ONU, que ajudaria a destravar a mobilização de recursos para atender às necessidades urgentes do povo. Também sugere que as autoridades devem conceder ao pessoal da ONU acesso total aos dados oficiais sobre doenças, epidemiologia, segurança alimentar e nutrição, para que possam realizar avaliação independente das necessidades humanitárias em todo o país.
Os especialistas entrevistaram mais de 150 pessoas, entre elas profissionais de saúde venezuelanos recém-chegados à Colômbia e ao Brasil buscando ou precisando de cuidados médicos ou alimentos. O documento também reforça que “o enorme êxodo de venezuelanos” – mais de 3,4 milhões nos últimos anos – está sobrecarregando sistemas de saúde nos países receptores, como o Brasil.
Os alertas do relatório
Sarampo
Entre 2008 e 2015, apenas um único caso de sarampo foi registrado (em 2012). Desde junho de 2017, mais de 9,3 mil episódios de sarampo foram notificados, com mais de 6,2 mil confirmados.
Difteria
A Venezuela não teve um único episódio de difteria entre 2006 e 2015, mas mais de 2,5 mil casos suspeitos foram notificados desde julho de 2016, incluindo mais de 1,5 mil confirmados.
Malária
A Organização Mundial da Saúde (OMS) relata que casos confirmados têm aumentado nos últimos anos – de menos de 36 mil, em 2009, para mais de 414 mil, em 2017.
Tuberculose
O número de casos notificados subiu de 6 mil, em 2014, para 7,8 mil, em 2016. Relatórios indicam que houve mais de 13 mil casos em 2017. A incidência aumentou consistentemente desde 2014, chegando a 42 por 100 mil em 2017, a mais alta em 40 anos.
HIV
No ano passado, quase nove entre 10 venezuelanos vivendo com o vírus HIV registrados pelo governo não estavam recebendo qualquer tratamento antirretroviral.
Mortalidade infantil
As últimas estatísticas oficiais do Ministério da Saúde da Venezuela indicam que, em 2016, a mortalidade materna aumentou 65% e a mortalidade infantil cresceu 30% em relação a 2015. Embora tenha avançado em toda a região, a Venezuela é o único país sul-americano onde a mortalidade infantil retornou a níveis da década de 1990.