A frase que abalou os corredores de Washington veio, claro, pelo Twitter: "Derrotamos o Isis na Síria, minha única razão para estar lá durante a Presidência Trump", disse o presidente americano.
Por meios diferentes, o anúncio da saída dos americanos do país do Oriente Médio guarda semelhanças em impacto com a famosa declaração do ex-presidente George W. Bush, expressa em uma faixa, a bordo do porta-aviões USS Abraham Lincoln, em 1º de maio de 2003: "Missão cumprida" (Mission Acomplished).
Naquele dia, Bush filho anunciava o fim dos principais combates da Guerra do Iraque. Como se sabe, nem os principais nem os secundários combates e tampouco a guerra acabaram naquele dia. Os conflitos duraram pelo menos mais uma década e, ainda hoje, pelo que pude constatar durante sete dias em que passei em Bagdá, em 2016, há dúvidas se algum dia a guerra realmente terminou por lá.
Dizer que os Estados Unidos derrotaram o grupo terrorista Estado Islâmico (também chamado de Isis) na Síria é mentira. Agora, o que está por trás desse anúncio?
1) Que fique claro: os EUA não mantêm tropas na Síria. Mas militares de forças especiais e alguns poucos destacamentos, cerca de 2 mil homens e mulheres principalmente na região Nordeste. Ou seja, sua presença é mais estratégica e pontual. É importante do ponto de vista de projeção de poder. A decisão de Trump de trazer de volta seus soldados é oposta à estratégia americana na região de neutralizar o poder e influência do Irã. O país dos aiatolás é a grande força xiita da região em guerra com outro importante player e aliado americano, a Arábia Saudita (de maioria sunita). A Síria, apoiada pelo Irã e pela Rússia, é o grande campo de batalha real e ideológico desse conflito, uma espécie de guerra fria dos tempos atuais.
2) Como em política não há vácuo de poder, ao saírem da Síria, os americanos abrem o flanco para que a Rússia ocupe terreno e e ganhe influência. O Kremlin tem todo o interesse do mundo em ganhar terreno no Oriente Médio, em oposição à presença americana em países árabes (Arábia Saudita e Jordânia, por exemplo), na Turquia (onde está a base da Otan de Incirlik) e em Israel.
3) Um ponto não se pode questionar Trump. Ao retirar os americanos da Síria ele está sendo coerente com suas promessas de campanha, lastreada em um discurso segundo o qual questionava o fato de os Estados Unidos gastarem trilhões de dólares e perderem vidas sem receber nada em troca. Trump, ao jogar para a torcida, diz que esta não é uma guerra dos americanos. Ok, mas como há interesses envolvidos e o país está lá, sair de uma hora para a outra só complica o cenário.
Por outro lado, o ponto de contradição é o seguinte: também durante a campanha, Trump acusou a administração Barack Obama de ter aberto o flanco para a expansão do Estado Islâmico justamente quando retirou as tropas americanas do Iraque. Agora, ele estaria fazendo o mesmo na Síria - o que pode dar força ao grupo que, como de hábito, vê a retirada de militares ocidentais como capitulação dos inimigos.
4) A conivência do regime russo com a Síria pode resultar em novas matanças da população civil. Sem tropas no terreno, os EUA perdem influência e poder de pressão sobre o governo de Bashar al-Assad, que em vários momentos é suspeito de ter bombardeado civis.
5) Nos Estados Unidos, a decisão, embora popular para o cidadão comum, é criticada por especialistas, entre eles membros do Congresso, integrantes do próprio Partido Republicano.
O tuíte de Trump desautoriza seus principais assessores. Na segunda-feira, o representante especial do governo para a questão síria, James Jeffrey, prometeu publicamente que o compromisso da Casa Branca com o país não recuaria. Em apresentação no Atlantic Council em Washington, ele disse que os EUA ficariam na Síria até garantir uma derrota duradoura do Estado Islâmico, reduzir a influência iraniana e alcançar solução política para a crise. Em agosto, o secretário da Defesa, Jim Mattis, também havia feito declaração semelhante. Um mês depois, o assessor de Segurança Nacional, John Bolton, aquele que o presidente eleito, Jair Bolsonaro, prestou continência, havia afirmado:
— Não vamos sair enquanto as tropas iranianas não estiverem fora de suas fronteiras.
Como se vê e como já aconteceu em outras ocasiões, Trump está desconsiderando os conselhos de seus principais generais e assessores de Segurança Nacional. A saída é um erro estratégico descomunal para os interesses políticos no Oriente Médio.