Desde 1927, a revista Time passou a eleger e publicar em sua prestigiosa capa uma personalidade do ano. Nem sempre os escolhidos foram exemplos admiráveis, até porque nem sempre os tempos são belos: Hitler figurou em 1938, com o mundo prestes a mergulhar no abismo, Stalin no ano seguinte e em 1942, e aiatolá Khomeini apareceu em 1979.
Mais do que uma pessoa em si, o rosto impresso na primeira página da Time resume, de certa forma, o que os alemães chamam de Zeitgeist, o tal espírito do tempo. Assim, as escolhas ultimamente têm recaído sobre várias pessoas que representam uma causa: em 2017, a capa foi para as mulheres que romperam o silêncio contra o assédio sexual.
Em um mundo onde a verdade factual é questionada – e, em grande parte das vezes, substituída pela versão –, o reconhecimento da Time, na terça-feira, a jornalistas perseguidos (alguns presos ou mortos) pelo seu trabalho é símbolo do espírito sombrio deste tempo. As quatro capas da edição homenageiam os colegas da redação da Capital Gazette, de Annapolis (EUA), vítimas de ataque em 28 de junho que terminou na morte de cinco funcionários; o colaborador do The Washington Post Jamal Khashoggi, morto após entrar no consulado saudita em Istambul no dia 2 de outubro; dois repórteres da Reuters presos em Mianmar, Wa Lone e Kyaw Soe Oo; e Maria Ressa, dona do Rappler, uma das últimas vozes independentes nas Filipinas sob o autoritário presidente Rodrigo Duterte.
Em outubro, conversei com Maria. Questionei como um presidente eleito com grande quantidade dos votos é capaz de se tornar, da noite para o dia, em um déspota, patrolando os demais poderes e as instituições.
– Foi uma transformação lenta. Não aconteceu da noite para o dia – corrigiu-me ela. – Percebemos isso por conta dos números da guerra às drogas. O tipo de ataques online a que estávamos sendo alvo sugeria que deveríamos parar com as reportagens. Percebemos que havíamos feito uma escolha. Em julho de 2016, decidimos continuar a questionar os números de mortos na guerra às drogas. No primeiro discurso sobre o estado da nação, o presidente Duterte atacou um diário filipino, dizendo que eram todos ligados aos viciados (em drogas). Continuamos reportando sobre a guerra às drogas, questionando quantas pessoas exatamente haviam sido mortas por esse conflito e qual o impacto em suas comunidades. Depois, percebemos que havia um esforço nas mídias sociais para silenciar qualquer questão sobre guerra às drogas – disse.
Há uma expressão que os jornalistas americanos usam para o jornalismo investigativo que se chama watchdog. É o cão de guarda, aquele que, se algum larápio pular a cerca da sua casa na calada da noite, irá latir. Na metáfora do jornalismo, repórteres consideram-se cães de guarda da democracia ao denunciarem mazelas do poder público ou privado em nome do leitor. Outra metáfora, talvez menos charmosa, é a do espantalho. Jornalistas são como aqueles bonecos de pano e palha em uma plantação. Mesmo que não façam nada nem se movam, as aves não se aproximarão daquela lavoura, muito menos a atacarão.
Maria, Jamal, colegas do Capital e da Reuters, obrigado, por serem – ou terem sido – cães de guarda ou espantalhos na lavoura desses tempos sombrios.