O governo de Rodrigo Duterte transformou-se em uma azeitada máquina de enxovalhar reputações e cercear a imprensa nas Filipinas utilizando-se das redes sociais. Eleito em 2016 com a promessa de pesar a mão contra os criminosos, ele está cumprindo sua palavra por meio de execuções extrajudiciais. Sua guerra às drogas levou à morte de 9.432 pessoas (a polícia admite 4 mil). Para a Igreja Católica das Filipinas é “um reino do terror”. Para a Human Rights Watch (HRW), uma campanha de extermínio, de total impunidade aos policiais.
Quem questiona sua política é taxado como “inimigo da pátria”. Apoiadores de Duterte não poupam críticos e a jornalistas. E é aí que as redes sociais entram como motor de perseguição à imprensa.
A retórica do governo filipino serve de alerta em ano de eleição no Brasil, onde candidatos de extrema-direita, como Jair Bolsonaro (PSL), podem conquistar apoio com o canto do combate à criminalidade a qualquer custo.
Maria Ressa, ex-correspondente da rede CNN, é uma das vozes que têm questionado o regime filipino. Jornalista com mais de 30 anos de experiência, a editora do site de notícias Rappler foi laureada com a Caneta de Ouro da Liberdade de Imprensa pela Associação Mundial de Jornais (Wan) e pelo Fórum Mundial de Editores. Além de ser ameaçada pelo regime, ela tem sido alvo de campanhas de hashtags projetadas para incitar grupos online a atacar e desacreditá-la e ao Rappler. De Manila, ela conversou com a coluna.
Quando a democracia filipina começou a se converter em um regime autoritário?
Foi uma transformação lenta. Não aconteceu da noite para o dia. Percebemos isso por conta dos números da guerra às drogas. O tipo de ataques online a que estávamos sendo alvo sugeria que deveríamos parar com os reportagens. Percebemos que havíamos feito uma escolha. Em julho de 2016, decidimos continuar a questionar os números de mortos na guerra às drogas. No primeiro discurso sobre o estado da nação, o presidente Duterte atacou um diário filipino, dizendo que eram todos ligados aos viciados (em drogas). Continuamos reportando sobre a guerra às drogas, questionando quantas pessoas exatamente haviam sido mortas por esse conflito e qual o impacto em suas comunidades. Depois, percebemos que havia um esforço nas mídias sociais para silenciar qualquer questão sobre guerra às drogas. Qualquer um que trouxesse à tona questões como execuções extrajudiciais era alvo de ataque no Facebook. Começamos a monitorar isso de muito perto e a coletar dados de agosto de 2016. Percebemos que tínhamos de fazer algo contra no Facebook. Testamos todos os passos para continuar fazendo o que sentíamos que era nosso trabalho, nossa missão. Mesmo que sejamos intimidados, soframos bullying pelas mídias sociais. Estamos sempre avaliando, testando, é contínuo esforço para reportar, questionar, exigir respostas das autoridades e que prestem contas às pessoas.
Que tipo de intimidação vocês são vítimas? Seus jornalistas, por exemplo, não podem cobrir o palácio presidencial?
Nossa repórter podia entrar no palácio, fazer perguntas, mas, no final de uma semana, foi dito a ela que não seria mais bem-vinda. Algumas semanas depois, ela não teve permitido seu posto em uma cerimônia pública com o presidente. Um mês depois, outra correspondente, em outra cidade, foi impedida de cobrir o presidente, enquanto ele falava em público. Obviamente, isso é um tipo de violação da Constituição. Continuamos questionando isso. Essa administração decidiu que só pode ter acesso quem fizer uma cobertura favorável.
O governo usa o Facebook para incentivar os internautas contra o seu site de notícias
Correto. Eles tentam silenciar pontos de vista divergentes.
A polícia matou, na guerra às drogas, mais de 9 mil pessoas. Os filipinos sabem disso?
Grupos de direitos humanos, Anistia Internacional, Human Rights Watch, todos têm questionado quantas pessoas morreram. A polícia admite 4 mil mortos. Mas são mais. Continuamos questionando, dizendo que esse número deve ser maior. A impunidade continua.
Teremos no Brasil eleições este ano e alguns candidatos, como Jair Bolsonaro, levantam a bandeira do combate à criminalidade com medidas duras, que geram dúvidas sobre respeito a direitos humanos. A senhora acha que o modelo Rodrigo Duterte pode ser imitado por outros políticos em outros países?
Não acompanho de perto a política brasileira. Mas Madeleine Albright (ex-secretária de Estado dos EUA) escreveu um livro chamado de “Fascismo”, no qual ela traça a ascensão de Benito Mussolini e Adolf Hitler. Parte do que estamos vendo agora é a ascensão do populismo, de líderes autoritários. As pessoas ao redor do mundo querem líderes que “sabem o que estão fazendo” e que resolvam os problemas de forma mágica. No caso das Filipinas, a violência em torno da guerra às drogas criou um cenário de medo que censura visões alternativas e questões sobre transparência. Espero que o Brasil não siga por esse caminho.
Até que ponto o populismo põe em risco a democracia?
O que vemos é, em parte, permitido pela tecnologia. São movimentos contra a democracia liberal, que reivindicam que ela não é percebida por todos, que não é sentida pelas pessoas comuns. Isso é um problema. Mas resolver esse problema elegendo homens que prometem respostas simples para perguntas complexas é criar governos autoritários. Uma das coisas que acho importante observar aqui é o papel da tecnologia. E das mídias sociais em particular.
Além das Filipinas, há retrocesso na democracia em outros países como na Venezuela.
Sim, é muito assustador. Tenham boa sorte com sua eleição no Brasil. A organização Repórteres Sem Fronteiras observa que a democracia está regredindo.
Tem sido comum políticos hoje em dia considerarem fake news informações verdadeiras que a imprensa publica, mas que são contrárias a seus interesses.
Não ajuda quando o líder dos EUA usa esse termo. Serve de exemplo a outros líderes. Duterte faz nas Filipinas o mesmo que Donald Trump. Ele chama de fake news (quando não gosta de uma informação). É parte da tendência global ao extremismo. A lição mais importante que os jornalista devem lembrar é de sua missão, de dar informação. É um mundo complexo. É fácil para um líder forte simplificar (as questões), ignorando nuances. Nas Filipinas, temos este mês uma taxa de inflação muito mais alta do que o governo previu. Temos de ter habilidade para fazer o governo prestar contas para a população.
O presidente Duterte ataca outros grupos? Ou só a vocês?
Em seu primeiro ano no governo, ele atacou o maior jornal, Phillippine Daily Inquirer, porque eles divulgaram os nomes das pessoas mortas na guerra às drogas. Atacaram o jornal pela foto de uma mãe e seu filho morto. O segundo foi a maior emissora de TV, ABS/CBN. Fomos os terceiros. Somos o maior site de notícias nas Filipinas. Esta administração definidamente tem agido para rebaixar a imprensa livre.
Os filipinos percebem a importância do jornalismo profissional?
Acho que sim. Houve um silêncio entre agosto de 2016 e agosto de 2017. Após a morte de três jovens na guerra às drogas, mais filipinos passaram a se tornar ativistas. Em especial este ano, com as ações contra o Rappler, as pessoas se deram conta. Espero que o governo esteja sendo fortemente pressionado por mais liberdade de expressão e que as pessoas se deem conta de que notícias verdadeiras e independentes são importantes na atual época.