A cultura do cancelamento é mais antiga do que a internet. Uma vez, lá pelos anos 1960, John Lennon disse que os Beatles eram mais famosos do que Jesus Cristo. Disse com a intenção de fazer uma frase de efeito para destacar a popularidade do grupo entre os jovens. Mas uma revista norte-americana publicou a declaração descontextualizada e o assunto virou polêmica planetária, potencializada também pelos tabus religiosos da época.
Por conta disso, até hoje tem gente que atribui o assassinato de Lennon a uma punição divina, embora tenha ocorrido 15 anos depois da controvérsia e o próprio assassino — Mark Chapman, condenado à prisão perpétua — de vez em quando dê uma nova versão para o seu tresloucado gesto. Já disse, inclusive, que sua intenção era promover o livro O Apanhador no Campo de Centeio. Leitura imperdível — acrescento eu — para se entender as turbulências mentais da adolescência.
Bem, voltemos aos Beatles. John Lennon passou sua breve vida explicando o que realmente quis dizer na frase sobre Jesus, mas não voltou ao assunto ao ser ressuscitado recentemente no filme Yesterday — imperdível também, garanto-lhes. Esta crônica é sobre o filme, que vi há poucas semanas na Netflix. Baseia-se numa ideia realmente fantástica: um apagão mundial faz com que a humanidade se esqueça da existência dos Beatles, com exceção do protagonista, um cantor de periferia que passa a executar as canções famosas que só ele conhece e se transforma em celebridade musical. Os críticos brincam que é um filme dos Beatles sem os Beatles, apesar da trilha musical e da aparição quase fantasmagórica de Lennon velhinho.
Paul McCartney torceu o nariz para a ideia quando o diretor lhe escreveu a respeito. Mas não partiu para o cancelamento. Preferiu responder que era interessante. Depois que o filme ficou pronto, ele e a esposa foram anonimamente a um cinema norte-americano e saíram encantados da sala. “Amamos!” — garantiu em entrevista posterior.
Quem nunca amou os Beatles (e os Rolling Stones) ainda tem chance de voltar atrás em relação às canções históricas, muito bem interpretadas pelo ator e músico Himesh Patel (Jack Malik no filme), que forma par romântico com Lily James (Ellie), sua amiga de infância e empresária. É um filme divertido, sensível, emocionante e com uma mensagem final capaz de unir cristãos e beatlemaníacos: all we need is love. Só precisamos de amor.