Beto (de Adalberto) Veríssimo é engenheiro agrônomo pós-graduado em Ecologia pela Universidade Estadual da Pensilvânia (EUA), pesquisador sênior e cofundador do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) e diretor do Centro de Empreendedorismo da Amazônia (CEA). Começou a trabalhar na região em 1988. Escreveu 20 livros sobre ambiente e desenvolvimento sustentável e coordenou estudos técnicos que resultaram na criação de mais de 25 milhões de Unidades de Conservação. O pesquisador disse ter lido toda a obra de Erico Verissimo, inclusive Solo de Clarineta, que descreve a árvore genealógica da família. E observa que, embora o sobrenome não seja tão comum, não há parentesco próximo.
Qual é seu diagnóstico sobre o que está ocorrendo na Amazônia?
Há três fatores. O primeiro é a mudança do clima, como a ciência previa, mas se antecipou em relação ao projetado. No mundo científico sério, não há negacionistas. Só existem por ignorância ou interesse de esconder. Estamos vendo só o início, a crise climática está contratada. O problema não será resolvido mesmo se a emissão de carbono parasse agora. O que podemos fazer é evitar o agravamento. O segundo é que há lugares em que as consequências dos extremos climáticos, como secas ou inundações, serão mais graves onde não houve cuidado, ou se desmatou onde não devia ou ocupou onde não devia, como no RS. O terceiro é a falta de preparo para lidar com a mudança do clima. Muitos têm percepção de que os grandes desastres ambientais vão ocorrer no mundo, e aqui não, porque somos abençoados por natureza. Há um estudo de Princeton (universidade americana) sobre o que ocorre no clima no mundo se perdermos metade da Amazônia. O Brasil seria o maior prejudicado. Não nos preparamos como país. Não estou falando em governos. O brasileiro não conecta, na hora de votar, se é alguém que terá poder de decisão e pode enfraquecer a proteção da floresta. O resultado é uma tragédia humana e um custo econômico gigantesco.
De onde vem esse custo?
A Amazônia vem em degradação há quatro décadas. Quando extremos climáticos levam a incêndios fora de controle, afetam todo o país. A floresta é composta por cerca de 400 bilhões de árvores, estimativa feita a partir de imagens de satélite. É uma bomba biótica: captura a água da chuva e joga na atmosfera. Isso se chama evapotranspiração: forma nuvens que se deslocam e criam os rios voadores, levando a umidade ao Sudeste e ao Sul. O ponto de não retorno (destruição que descaracteriza o bioma) compromete os rios voadores e pode faltar água para cultivos e para gerar energia. O que ocorreu nas últimas décadas se agravou no governo anterior, porque houve descaso e até incentivo ao desmatamento. Agora está em queda, mas acumulou tantos problemas que as queimadas viraram fenômeno catastrófico. Não ficam restritas porque o Brasil está secando. As queimadas são um problema triplo: prejudicam a saúde humana, destroem a floresta e geram enorme perda econômica, porque arrasam plantações, matam animais, com efeito social grave. É muito caro combater queimadas em um país continental. Neste ano, quase metade do território nacional teve focos de incêndio. Na Califórnia, que fica em país rico e com área muito menor, já é difícil.
Não é um custo só simbólico, é financeiro?
Se não cuidar bem da Amazônia, o Brasil vai pagar uma conta altíssima. A destruição da floresta é um tiro no pé do agronegócio em um país que depende da natureza para sua economia. Para ter água, precisa ter floresta. O agronegócio depende de regularidade da chuva, e de que chova. No Brasil, a irrigação é feita por chuva, não por infraestrutura, como nos EUA. A floresta em pé é o que dá competitividade ao agronegócio brasileiro. É preciso conectar os pontos. Quando o Congresso anistia desmatamento e enfraquece as leis ambientais, contrata um problema que volta na forma de queimadas, estiagens. Não estou surpreso com o que está acontecendo. A expectativa era de piora nessa década. Em 2024, está mais dramático. Há sempre expectativa de que o pior cenário não se concretize, mas as próximas serão mais graves. A gente está, literalmente, brincando com fogo. Já tivemos dilúvio no RS e queimadas bíblicas no resto do Brasil, para usar uma metáfora.
Todas as queimadas são resultado de incêndio criminoso?
O grosso, não, não é gente tocando fogo. Quando grileiros invadem florestas públicas, o sinal de que tomaram posse é mostrar que desmataram. Vão se beneficiar com o caos. O produtor rural não vai queimar sua área. O Brasil faz queimadas controladas, e o agricultor não está preparado para um clima tão seco. Mas não é o agro colocando o próprio negócio em risco. É preciso apurar a existência de crime organizado no interior de São Paulo e na Amazônia. Temos de prender com essa lição. Não se tem notícia na história de uma seca nessa escala. Não precisa mais desmatar para produzir alimentos, já existe muita área devastada.
Avançando na solução, o que pode se fazer?
Coordeno um projeto que começou em 2021 chamado Amazônia 2030, que envolve os melhores economistas que conseguimos recrutar, como Alexandre Scheinkman, de Princeton. Temos três paradoxos de problema e solução. O primeiro é que, em 40 anos, já se desmatou uma área equivalente a Minas Gerais e São Paulo juntos. Dois terços dessa área são subaproveitados ou abandonados. Se vê centenas de quilômetros em área desmatada com pouquíssima produção agrícola. Uma solução é usar esses lugares para replantar floresta. Há várias entidades dedicadas a essa restauração, como a Biomas, que une setores do agro no Brasil. Isso gera emprego e renda: é preciso produzir mudas, plantar, cuidar. As árvores vão crescer e voltar a capturar ou sequestrar carbono. Para fazer essa retirada, só há duas formas, ou usar tecnologias supersofisticadas e caras, ou por meio de plantas que fazem a fotossíntese. É o que as árvores sabem fazer, estão há meio bilhão de anos fazendo isso. Também é possível gerar negócios, a economia da restauração.
Como gerar empregos sem desmatar?
Esse é o terceiro ponto do paradoxo. No passado, a Amazônia era considerada um atraso. Progresso significava derrubar a floresta para gerar riqueza. Agora, a floresta tem valor crescente de pé, tanto do ponto de vista do clima quanto econômico. Não se trata só de gerar bioeconomia. A floresta presta serviços ecossistêmicos, até há pouco não valorizados. É um serviço que garante boa parte da chuva que irriga a agricultura brasileira. Isso está sendo bem quantificado, cientistas têm medido o papel do rios voadores. É um valor pelo qual a floresta tem de ser remunerada, seja quem for o proprietário, indígenas, quilombolas, fazendeiros, agricultores ou governo. Há várias iniciativas de bioeconomia que podem ser desenvolvidas, mas é preciso também pensar em cidades como Benjamin Constant, na fronteira com a Colômbia, que tem custo de transporte muito alto para qualquer coisa que seja produzida lá. O que dá escala para o valor da floresta em pé é o serviço ecossistêmico.
Que tipo de bioeconomia é viável?
Nas regiões mais próximas de Belém e Manaus, da infraestrutura, pode-se cultivar cacau. É uma planta amazônica e viável tanto na floresta quanto em áreas desmatadas, com sistemas agroflorestais. A Amazônia pode se tornar a grande produtora de cacau do mundo no futuro, até porque o cultivo na África enfrenta problemas. Outra forma é recuperar área desmatada para reflorestar, com açaí plantado, abacaxi, que também é amazônico. A Amazônia é um berço de domesticação de espécie. Toda economia diretamente relacionada à natureza e dependente de biodiversidade pode ser desenvolvida. A soja já tem seu espaço, não tem de sair, mas pode continuar como está agora, sem avançar mais sobre a floresta. É preciso pensar também em soluções para as cidades, porque a população é cada vez mais urbana. Podem se transformar em centros de tecnologia da informação. E ainda há o setor de mineração. Boa parte da balança de pagamentos do Brasil vem de Carajás. O Pará ganhou na loteria geológica. Tem ferro de altíssima qualidade e muita bauxita, essencial para o alumínio que é base para a transição energética. A solução para a Amazônia é o desenvolvimento econômico, mas com a floresta como aliada, não inimiga como há 40 anos. O futuro depende de manter a floresta em pé.
A medida provisória de R$ 514 milhões não é tímida?
Esse recurso é para combater fogo, é muito mais do que temos tido, logo é bem-vindo. É para uma necessidade urgente, vai ajudar bastante. Mas é fato que as condições estruturais vão permanecer. No ano que vem, será preciso gastar de novo. A necessidade é na escala de bilhões, não de milhões. O Ministério do Meio Ambiente tem um papel constitucional que está sendo exercido. Está faltando, no governo, a agenda de desenvolvimento, com orçamento significativo. Claro, isso depende também do Legislativo. Não adianta colocar dinheiro para desenvolvimento e regularizar grileiro. É uma crise que exige resposta coordenada. É papel do governo criar condições para que o setor privado venha e possa investir. Quem vai cuidar da segurança e da regularização fundiária é o setor público. Claro, vai ter de priorizar, não dá para fazer tudo ao mesmo tempo. É preciso que empresas e investidores cheguem à Amazônia e gerem prosperidade.
Qual o papel de outros países?
O Brasil hoje tem bom conhecimento sobre a Amazônia, sabe o que tem de ser feito. Mas obviamente vai precisar de colaboração internacional. O Brasil presta serviços ambientais para o mundo, então outros países também têm de pagar por isso. O discurso está melhorando. Ainda não se vê investimento à altura. O orçamento da Amazônia está indo para o combate ao desmatamento, mas ainda não para o desenvolvimento e para o enfrentamento do crime organizado, nem para a regularização fundiária. Quem nunca foi à Amazônia não tem ideia de que um só município, Altamira, é só ligeiramente menor do que todo o Paraná. Pode-se percorrer 1,2 mil quilômetros sem sair de Altamira. A boa notícia é que a ficha caiu.