Depois de fazer carreira e fortuna no mercado financeiro, João Paulo Pacífico se tornou um “CEO ativista”, o que em seu caso significa ser um defensor enfático de um capitalismo mais inclusivo e de causas sociais. Depois de vender uma das maiores securitizadoras do mercado, a Gaia, em 2022, criou um fundo patrimonial para investir em projetos de impacto positivo. No ano em que deve começar o debate sobre a reforma dos impostos sobre a renda, a de Pacífico é uma das raras vozes que pede mais taxação sobre si mesmo. Pacífico já havia falado à Rádio Gaúcha, mas a coluna voltou a ouvi-lo para entender melhor suas origens e motivações.
Como começou sua trajetória profissional?
Nasci em uma família de classe média, em São Paulo. Meu pai trabalhou como executivo de empresas, e minha mãe sempre teve um lado um pouco empreendedor, muito ligada a questões sociais, duas coisas que me impactaram bastante. Hoje, minha mãe trabalha na ONG Gaia+, meus irmãos também. Fiz faculdade de engenharia, pós-graduação em finanças, foi para o mercado financeiro, por sorte/privilégio, porque homem branco em São Paulo que fez faculdade de Engenharia é mais fácil de ser contratado. Comecei a trabalhar no mercado financeiro em 1999 e trabalhei 10 anos antes de fundar a Gaia, em 2009.
Depois, fui aprofundando, vendo o que posso fazer para que o negócio da Gaia cause impacto positivo no mundo. Não só para que as pessoas fiquem bem, mas para reduzir a desigualdade, ajudar na questão climática.
Quais eram os objetivos do Grupo Gaia?
Abri a empresa porque estava incomodado com a falta de humanidade do mercado financeiro. É como se cada pessoa fosse uma célula em uma planilha Excel. Aperta "delete" e demite. Queria uma empresa mais humana, que entendesse que as pessoas podem ser felizes no trabalho. A Gaia começou em 18 de março de 2009, no meio daquela crise financeira de 2008. As empresas viraram máquinas de moer gente para ganhar o máximo de lucro. Isso faz mal. É injusto ter um ambiente de trabalho em que as pessoas sofram, tenham burnout, ansiedade, depressão. O lucro não justifica tratar as pessoas assim. Depois, fui aprofundando, vendo o que posso fazer para que o negócio da Gaia cause impacto positivo no mundo. Não só para que as pessoas fiquem bem, mas para reduzir a desigualdade, ajudar na questão climática. Aí entrei no mundo de investimentos de impacto, que é investir em coisas que causem um impacto positivo na sociedade e no planeta. Vim nessa toada, até que em 2022 vendi tudo e mantive só o negócio de impacto. Agora estou transformando tudo em uma associação, que vai ser a Gaia Legado.
Por que tomou essa decisão?
O mercado é pautado pela ganância, em como ganhar o máximo possível. Sou contrário a isso. Esse mundo da ganância e individualismo está levando a problemas catastróficos, e o investimento de impacto é o oposto. É como consigo contribuir para uma sociedade melhor, como deixou um legado que faça sentido, melhorar a vida das pessoas. Para mim, foi muito óbvio. É um grande privilégio poder trabalhar com algo que faça a diferença no mundo. Tem muita gente viciada em dinheiro, vejo como um vício, mesmo. Há pessoas que têm muitos recursos, dinheiro mais que suficiente para suas vidas e as de seus herdeiros, e continuam querendo ganhar mais. Isso é surreal. Temos de pensar de forma colaborativa, é o único caminho para continuar tendo um mundo. Ou a gente passa a colaborar, ou o negócio vai ser cada vez pior.
Não fiz nenhum voto de pobreza, mas simplesmente entendo que, se quero um mundo melhor, tenho que abrir mão para que esse dinheiro seja investido apoiando causas.
Com o dinheiro da venda, fará doação para formar a Gaia Legado?
Está entrando via o que chamamos no Brasil de fundo patrimonial. Esse dinheiro vai para isso, então é uma doação. Para reduzir a pobreza e a miséria, quem tem mais precisa abrir mão. Tem de desapegar, mesmo. Não fiz nenhum voto de pobreza, mas simplesmente entendo que, se quero um mundo melhor, tenho que abrir mão para que esse dinheiro seja investido apoiando causas. Desde o começo da Gaia, eu já tinha esse olhar, mas com conhecimento e experiência fui aprimorando até chegar aos investimentos de impacto. Em 2014, montei a Gaia Mais, que é uma ONG que trabalha com educação. Já tem 10 anos, e a gente tem um trabalho bem forte com crianças em alta vulnerabilidade social.
Que tipo de problema você quer ajudar a resolver?
Hoje há dois grandes problemas, a emergência climática e a desigualdade social. E os dois estão intimamente conectados. Não adianta só exigir que governos, ou ONGs resolvam. O mundo empresarial tem de entender que tem responsabilidade gigante, que passa pela forma como atua e pela forma como impacta políticas públicas. Os empresários precisam ser essa consciência. Aí a gente chega naquela maluquice de um cara querer morar em Marte, sabe? Enquanto tem gente aqui morrendo de fome. Grande parte das pessoas de alto poder aquisitivo estão completamente desconectadas da realidade.
Quem ganha dinheiro no Brasil, e quem tem muito dinheiro, com as taxas de juro, dificilmente vai ganhar dinheiro assim lá fora
Como vê a polêmica gerada por sua tese de que quem tem mais recursos deve pagar mais impostos?
Para mim é muito óbvio. O Estado precisa ter recursos, ponto. Para ter SUS, para ter escola pública, e de qualidade, precisa de recursos. Com isso, a maioria concorda. E quem tem de pagar mais imposto? A pessoa que tem menos ou a pessoa que tem mais? Para mim é óbvio: quanto mais tem, mais imposto proporcional a pessoa tem de pagar. Ah, 'mas o cara vai tirar o dinheiro do Brasil' (alusão à expectativa de que, quando se taxa quem tem mais, ocorra evasão). Tenho duas respostas: a primeira é que quem ganha dinheiro no Brasil, e quem tem muito dinheiro, com as taxas de juro, dificilmente vai ganhar dinheiro assim lá fora. E outra, é que quem fala assim é chantagista. É tipo aquele menino mimado que é o dono da bola e se não fizer gol vai levar a bola para casa. A classe média no Brasil também paga muito imposto. O cara que é realmente rico chega para o cara de classe média e fala 'imposto é roubo, não quero pagar imposto'. O classe média pensa 'realmente, pago muito imposto' e aí defende que o rico não pague imposto. Só que não entende que o rico paga muito menos do que ele.
Considera factível uma reforma tributária com cobrança mais justa e proporcional de impostos?
Os mais ricos sempre vão fazer de tudo para não pagarem mais. Mas acho possível. Já houve mudanças positivas, como a tributação sobre fundos exclusivos. É um caminho. Outra questão que devemos discutir, não só no Brasil, é a da renda básica universal. Todo mundo tem de ter direito a uma renda. Fala-se sobre isso há décadas, porque não vai ter emprego para todo mundo. No mercado, interessa ter desemprego, porque você consegue baixar o custo da mão de obra. Isso é deplorável, mas vai chegar a uma situação muito pior. Com a inteligência artificial, muito emprego vai deixar de existir. É por isso que renda básica universal é uma necessidade. E vai sair de onde? Vai sair do Estado. E quem vai ter de pagar? Os mais ricos.
* Colaborou Mathias Boni