Não foi um rio que passou na nossa vida. De azul, o desfile da Portela na Sapucaí trouxe o oceano em versão de pesadelo, porque representava a penosa travessia dos escravizados da África pra o Brasil. O enredo chamado Um Defeito de Cor é uma aula sobre os motivos pelos quais nenhum brasileiro pode se omitir na busca da inclusão racial.
O título é o mesmo do livro em que se inspira, da escritora Ana Maria Gonçalves, que por sua vez elabora uma ficção com base nos quase inexistentes registros de Luiza Mahin ou Kehindé, mãe do abolicionista Luiz Gama.
O pouco que se sabe da personagem feminina vem dos escritos do filho, e o enredo não é igual à história do livro, mas uma versão alternativa e esperançosa de um reencontro entre mãe e filho.
E "defeito de cor" era o nome que, em latim (defectu coloris), designava uma espécie de "licença" que pessoas negras precisavam pedir para se candidatar a cargos sacerdotais. Foi um dos motivos do ativismo do abolicionista Luiz Gama, que o classificava como "um imperdoável mal de nascença, o estigma de um crime."
A história oficial cobre apenas a trajetória do filho da personagem Kehinde, e ainda assim de maneira precária, com boa parte dos registros feita pelo próprio Luiz Gama, nascido livre e vendido como escravo pelo pai, um português. Aprendeu a ler sem escola, conquistou a sua própria liberdade e a de cerca de 500 escravizados por atuar como rábula (advogado sem formação completa em Direito).
Luiz Gama está lá, como narrador do enredo - no livro, quem conta a história é sua mãe -, mas o foco está sobre Kehindé. É uma personagem ficcional e simbólica: uma mãe negra consciente de sua liberdade, mas escravizada e submetida a maus-tratos físicos e psicológicos: não pode exercer suas crenças nem honrar seus antepassados. Ou suas antepassadas, porque a história também é sobre ancestralidade matriarcal.
O enredo faz a conexão dessa quase-lenda com as milhões de mães negras que ainda hoje lutam para sobreviver e pela vida de seus filhos em um pais marcado pela violência racial. No carro que fecha o desfile, estavam as mães de Marielle Franco, Marinete France, de Kathlen Romeu, Jackeline Oliveira, e Jhonata Oliveira, Ana Paula Oliveira. Todas com a esperança de que o Brasil se desencontre do preconceito de um "defeito de cor".
Em um tempo em que as empresas são obrigadas a desenvolver conceitos de ESG (governança corporativa, social e ambiental), é bom lembrar que, assim como existe "green wash", ou maquiagem verde, o que define falsas práticas ambientais, a falta de inclusão e justiça racial impede o cumprimento do requisito "S": produz mais desigualdade e freia a evolução do Brasil.