Adriana Barbosa se tornou uma das maiores referências sobre empreendedorismo negro no Brasil. CEO da plataforma PretaHub, também foi idealizadora e preside o Instituto Feira Preta, evento anual que ocorre desde 2002. Em 2020, foi reconhecida como a primeira mulher negra entre os Inovadores Sociais do Mundo no Ano, pelo Fórum Econômico Mundial, e, em 2022, considerada uma das 500 pessoas mais influentes da América Latina pela Bloomberg Linea. À coluna, Adriana falou sobre seu início como empreendedora, detalhou o processo de criação da Feira Preta e da PretaHub, e também pontuou alguns dos principais desafios para o fomento do empreendedorismo negro e feminino no Brasil. O assunto é obrigatório no mês da consciência negra, mas necessário todos os dias no Brasil para superar a insustenbilidade da economia que está entre as 10 maiores, mas tem uma das 10 maiores desigualdades no mundo.
Qual foi a referência de outras mulheres da família na sua vida?
Venho de uma criação de mulheres negras, fui educada por bisavó, avó, mãe, e tive uma menina, então formamos cinco gerações de mulheres, e o fato de ter esse matriarcado determina muito do que faço hoje. Minha infância foi desprovida de recursos, mas muito abundante em afeto e carinho dessas mulheres. Nasci na cidade de São Paulo, sempre frequentei escolas públicas, e tenho uma memória muito afetiva de me relacionar com minhas primas, meninas da mesma idade, que também eram cuidadas por um ciclo de outras mulheres. Então, essa questão do feminino é muito forte para mim desde a infância, por uma ausência de homens e pela presença de muitas mulheres cuidando da família e da casa.
Quando e como o empreendedorismo entrou na sua vida?
Pelos 13, 14 anos, e pela minha bisavó, que era muito astuta. Já com mais de 80 anos, ela se preocupava com a nossa falta de dinheiro. Na época, a casa era sustentada pela minha mãe e pela minha avó, trabalhando no serviço doméstico, mas o dinheiro era muito escasso. Minha bisavó dizia que precisávamos cuidar da nossa avó, que ela precisava trabalhar menos, e começou a fazer coxinhas de galinha para vender. Eu e meu irmão vendíamos na rua, depois ela passou a fazer marmitas, as "quentinhas da dona Maria", para atender à vizinhança. Era semianalfabeta, sem ter nenhuma formação de negócios, mas sabia como precificar o produto, pois observava os preços das outras quentinhas da região. Mandava a gente fazer faixas e cartões para distribuir, pedia para deixar perto de obras, onde identificava que poderia formar seu público. Liderava a produção, mas cada um na família tinha uma função, quem atendia o telefone e pegava os pedidos, outro finalizava a marmita, outra fazia a entrega. Tinha um olhar de 360° para esse empreendedorismo de necessidade.
Como surgiram a Feira Preta e a PretaHub e quais as dificuldades que você enfrentou?
Frequentando as feiras de rua, onde eu vendia minhas roupas, comecei a ver que existia a oportunidade de criar uma feira tematizada de cultura negra, e a Feira Preta surgiu em 2002. No começo, a gente ia nas feiras de rua e perguntava para os coordenadores como eles faziam, para nos ensinar, mesmo. Depois, chegamos ao Sebrae, pegando livros na biblioteca, e lá conhecemos a Rede de Agentes Culturais (RAC), e fomos construindo o networking. Já com a parte técnica estruturada, começamos a pedir patrocínio. Tivemos apoio da revista Raça, que começava a falar sobre consumo da população negra, e da Unilever, que estava lançando produtos segmentados para a população negra no Brasil. Depois, conseguimos trazer Red Bull, a cerveja Xingu, e por aí vai. Em 2008, entrei para a Artemisia, que trabalhava com o conceito de empreendedorismo de impacto social, onde passei por incubação e aceleração, e recebemos um aporte de R$ 40 mil. Passei por outras redes de incubação, a feira foi se desenvolvendo, até que em 2016 não reunimos a quantidade de público de que a gente precisava. Então, em 2017, criei a PretaHub, o que mudou tudo, pois passamos a pensar a feira em um modelo sistêmico, transformamos em festival.
Queremos fortalecer o campo econômico da população negra no Brasil, olhando para a economia do cuidado, a verde, a criativa, a solidária.
Quais são os projetos da PretaHub?
Queremos fortalecer o campo econômico da população negra no Brasil, olhando para a economia do cuidado, a verde, a criativa, a solidária. Para isso, temos um desenho sistêmico. Temos produção de dados, com o Preta Dados, com pesquisas de empreendedorismo e consumo, as Casas Preta Hub, que são laboratórios de inovação social, espaços coletivos de economia criativa e de colaboração. Temos também o Afro Lab, programa de educação empreendedora, também com aceleração, incubação, rodadas de negócios, investimentos. Só nos últimos dois anos, investimos cerca de R$ 3 milhões em negócios liderados por população negra, sobretudo mulheres negras. Mantemos também o Pretas Potências, programa voltado à juventude negra, o Conversando a Gente se Aprende, nosso braço de consultoria sobre letramento e equidade racial para grandes empresas, o projeto Bioma Comunicação Ancestral, que é uma plataforma com mapa de mais de 800 profissionais negros e indígenas que atuam no ecossistema de comunicação, além do festival Feira Preta, que ocorre uma vez por ano, e que em 2024 será no Parque Ibirapuera.
A mobilidade social da população negra no país ocorre por duas perspectivas na lógica da inclusão produtiva, que é a empregabilidade ou o empreendedorismo.
Por que incentivar o empreendedorismo negro e na periferia em um país com grande potencial econômico mas também grande desigualdade, como o Brasil?
O empreendedorismo da população negra é essencial para reduzir a desigualdade do Brasil, como o periférico, o da população LGBTQIA+ e da indígena. A mobilidade social da população negra no país ocorre por duas perspectivas na lógica da inclusão produtiva, que é a empregabilidade ou o empreendedorismo. No primeiro caso, o fenômeno dos negros em melhores posições no mercado de trabalho é mais recente, pois as cotas raciais, que potencializaram esse movimento, existem há cerca de 30 anos no Brasil, e boa parte do mercado de trabalho exige nível universitário. Então, a forma como a população negra se virou nos últimos anos foi pelo empreendedorismo, mas muito no empreendedorismo da necessidade, da sobrevivência. Nas principais pesquisas do segmento, a categoria microempreendedor individual tem maioria de população negra como empreendedora, só que apenas nessa categoria. Precisamos quebrar esse teto ainda associado à sobrevivência. Precisamos de estratégias de fomento e desenvolvimento do empreendedorismo negro em pequenas e médias empresas, precisamos ter mais negros com negócios produzindo em escala industrial para chegar a outro patamar. Precisamos da população preta com maior acesso a tecnologia, passar de fato pela transformação digital, infraestrutura tecnológica, além de acesso a crédito, criar um ambiente de desenvolvimento da população negra no Brasil. E eu só vejo isso a partir de políticas públicas, com a construção de uma legislação que reconheça e garanta essa forma de empreendedorismo com essas especificidades, e traga ações afirmativas para corrigir as distorções que temos hoje.
* Colaborou Mathias Boni