Os trechos de vídeos da reunião ministerial do dia 5 de junho de 2022 compõem um filme de terror. Discute-se, em um evento com aspecto oficial - com direito a “prismas” (papel dobrado para identificar um participante) com os nomes dos participantes e a tarja da República - temas como "virar a mesa", "fazer alguma coisa antes" das eleições e "agir contra determinadas instituições".
Pausa para um exercício: imagine-se o impacto das cenas se os participantes fossem Lula e seus atuais ministros.
Para muitos de seus seguidores, o ex-presidente Jair Bolsonaro não é só inelegível, é inimputável. Não importa quanto sua digital esteja impressa – como no texto que anuncia decretação de estado de sítio mencionando "as quatro linhas da Constituição" – nem que esteja gravada sua proposta de insurreição, nada é visto como prova suficiente.
Pelas frases que apareceram nos documentos liberados no dia da operação, supunha-se que se tratasse de uma reunião secreta e restrita apenas aos envolvidos diretos com o assunto. Nada disso. Era uma reunião ministerial formal, com a presença de todos, inclusive do então ministro da Economia, Paulo Guedes.
Bolsonaro e o então chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, foram os mais vocais. A certa altura, consciente da gravidade das declarações, o então ministro da Controladoria Geral da União, Wagner Rosário, pergunta se a conversa está sendo gravada. Bolsonaro responde que mandou gravar as falas dele.
Pausa para outro exercício: para que finalidade o então presidente queria gravar esse momento? Certamente não para produzir provas contra si mesmo. A especulação mais provável é a de que queria um documento do dia em que mudaria o futuro do Brasil.
O fato de as frases terem mais palavrões do que pausas lógicas só acentua o clima de tensão. O que Rosário tentou fazer foi destacar o fato de que o Tribunal de Contas da União (TCU) já havia comprovado a lisura das urnas eletrônicas. Leva uma rude descompostura.
Quando Augusto Heleno levanta o assunto de "infiltrar agentes nas campanhas eleitorais", encara um corte brusco e a ordem de discutir esse assunto "em particular, no gabinete". Por que será que se pode falar em "atacar determinadas instituições", mas não em "infiltrar agentes"? Talvez ficasse mal na narrativa da "resistência heroica" nascida em 5 de julho.
Mas assim como a violência verbal impressiona, há outro comportamento que assusta: a aparente naturalidade com que 23 ministros ouvem a discussão sobre a quebra da institucionalidade. O nome do filme de terror poderia ser “O Silêncio dos Pouco Inocentes”.
Emudeceram ante o constrangimento explícito do chefe:
— Daqui pra frente quero que todo ministro fale o que eu vou falar aqui, e vou mostrar. Se o ministro não quiser falar ele vai vim falar para mim por que que ele não quer falar. Se apresentar onde eu estou errado eu topo. Agora, se não tiver argumento pra me ti... demover do que eu vou mostrar, não vou querer papo com esse ministro. Tá no lugar errado. Se tá achando que eu vou ter 70% dos votos e vou ganhar como ganhei em 2018, e vou provar (como que eu ganhei), o cara tá no lugar errado — disse o então presidente no ato.
Pontos da materialidade da preparação do golpe
O vídeo da "dinâmica golpista"
Um vídeo arquivado em um computador de Mauro Cid mostra uma uma reunião realizada em 5 de julho de 2022 - poucos dias antes do encontro com embaixadores em que o ex-presidente colocou em dúvida a lisura das urnas eletrônicas. Nesse encontro que, segundo a PF, mostra a "dinâmica golpista", um dos mais exaltados era o então ministro-chefe do GSI, Augusto Heleno, que disse ter conversado com o diretor-adjunto da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) "para infiltrar agentes nas campanhas eleitorais". Conforme a descrição da PF, foi calado por Bolsonaro, que pediu para o tema ser tratado apenas com ele. Heleno queria "virar a mesa" antes das eleições:
"Não vai ter revisão do VAR. Então, o que tiver que ser feito tem que ser feito antes das eleições. Se tiver que dar soco na mesa é antes das eleições. Se tiver que virar a mesa é antes das eleições".
O general que mobilizaria a tropa
Com base em diálogos encontrados no celular do coronel Mauro Cid, a PF afirma que o general Theophilo Gaspar de Oliveira se reuniu com Bolsonaro no Palácio da Alvorada e "consentido com a adesão ao golpe de Estado desde o que presidente assinasse a medida". Conforme a investigação, Theophilo seria "responsável operacional pelo emprego da tropa caso a medida de intervenção se concretizasse" e "caberia às Forças Especiais do Exército (os chamados kids pretos) a missão de efetuar a prisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes assim que o decreto presidencial fosse assinado".
Bolsonaro "enxugou o decreto"
Em mensagem de áudio via WhatsApp, de 9 de dezembro de 2022, Mauro Cid faz um relato do que se passava no Palácio da Alvorada ao general Freire Gomes:
"O presidente tem recebido várias pressões para tomar medidas mais, mais pesadas, onde ele vai, obviamente, utilizando as forças, né?, mas ele sabe, ele ainda continua com aquela ideia que ele saiu da ultima reunião, mas a pressão que ele recebe é de todo mundo. (...) E hoje o que que ele fez de manhã? Ele enxugou o decreto, né? Aqueles considerandos que o senhor viu e enxugou o decreto, fez um decreto muito mais resumido,né? (...) por que se não for, se a força nao tocar pra frente. (...) Mas ele ainda tá naquela linha do que foi conversado com os comandantes, né? e com o ministro da Defesa. Ele entende as consequências do que pode acontecer. Hoje ele mexeu naquele decreto, né. ele reduziu bastante. Fez algo muito mais direto, objetivo e curto, e limitado, né."
Constrangimento dos legalistas
O general Walter Braga Netto, ex-ministro da Defesa e vice na chapa de Jair Bolsonaro em 2022, pediu, em mensagens pelo celular, ao coronel reformado do Exército, Ailton Barros, que atacasse militares que se colocavam ao lado da Constituição e resistiam às teses golpistas.
"Senta o pau no Batista Júnior (tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, que foi comandante da Aeronáutica). Povo sofrendo, arbitrariedades sendo feita (sic) e ele fechado nas mordomias. negociando favores. Traidor da pátria. Daí para frente. Inferniza a vida dele e da família."
Braga Netto também recomendou elogios ao ex-comandante da Marinha, almirante Almir Garnier Santos, um dos alvos de busca e apreensão da operação Tempus Veritatis:
"Elogia o Garnier e f*** o BJ.".