No mercado, uma vitória do anarcocapitalista Javier Milei no primeiro turno das eleições presidenciais argentinas era chamada de "cisne negro" - conceito do matemático Nassim Taleb que define um fato imprevisível, com resultados impactantes, para o qual se cria uma lógica só depois de sua ocorrência.
Não só não foi no primeiro turno, como sequer houve vitória: o "fenômeno" Milei ficou em segundo, com praticamente a mesma votação (29,98%) alcançada nas primárias (29,86%) - contados 98,51% dos votos.
Na busca de explicações para a "surpresa", a mais sintética é a de que os argentinos tiveram mais medo do futuro com dolarização e ruptura com Mercosul em geral e Brasil em particular de Milei do que do presente de inflação de 138% e medidas populistas com Sergio Massa, primeiro colocado com inesperados 36,68% ante os 27,28% que haviam lhe dado um modesto terceiro lugar nas primárias.
A surpresa vai entre aspas por dois motivos: não só Massa é peronista, força política aparentemente imortal na Argentina, como é ministro da Economia, ou seja, tem a máquina pública, que usou sem hesitar. Ainda assim, a primeira reação econômica ao resultado ampara a tese do maior medo do futuro: os bônus em dólares despencam 11% no início da manhã e o dólar futuro cai 6%. Em sinal de que a crise persiste, a bolsa de valores de Buenos Aires despencou mais de 10% na abertura.
É um claro sinal de que a dolarização - uma das principais propostas econômicas de Milei - já não é um cenário tão dominante quanto poucos dias atrás. Como o segundo turno na Argentina está previsto para 19 de novembro - dentro de menos de um mês - os candidatos não perderam tempo.
Nos discursos formais de reconhecimento dos resultados, feitos ainda na noite de domingo, mostraram qual será a estratégia: Milei fez acenos explícitos à coligação Juntos por el Cambio, citando candidatos do entorno de Maurício Macri, como o primo do ex-presidente, Jorge Macri, que quase se elegeu em primeiro turno para comandar a Cidade Autônoma de Buenos Aires, e Rogelio Frigerio, que ganhou o governo da província de Entre Ríos depois de duas décadas de peronismo no poder.
— Somos o único veículo para terminar com o kirchnerismo — afirmou, referindo-se à corrente do peronismo representada pela atual vice-presidente, Cristina Kirchner, que conseguiu reeleger o governador da província de Buenos Aires, Alex Kiciloff.
Massa nem tentou esboçar algum gesto para o PRO, partido de Macri, embora tenha afirmado "la grieta se murió" (a divisão morreu) - referência aos anos de polarização entre peronistas e macristas. Pediu votos de quem não foi às urnas por "bronca" (indignação) - e mencionou que vai buscar apoio dos "radicais" - acusados de "traidores" por Milei.
Na Argentina, um "radical", em termos partidários, designa integrantes da Unión Cívica Radical, partido que disputava com o peronismo até a dramática queda de Fernando de la Rúa, um de seus integrantes, que fugiu da Casa Rosada de helicóptero em meio ao caos e à violência nas ruas desencadeado no final de 2001.
"Engolido" meio a contragosto pelo kirchnerismo, Massa apareceu sozinho para o discurso, sem a tradicional equipe de campanha - só no final, chamou sua família e a seu vice, Agustín Rossi ao palco. A fórmula faz parte da tática de vestir o figurino do "centro democrático", com apelos a um adversário histórico e promessa de um governo de "unidade nacional", que vai buscar "as melhores pessoas" para a equipe.
Atualização: o dólar futuro fechou o dia seguinte ao primeiro turno com queda de 30% - evidência que que a expectativa de dolarização caiu-, mas o paralelo mais usado no país, o blue, disparou e fechou a 1.100 pesos, alta equivalente a mais de 10%. A bolsa de valores da Argentina despencou 12,36%. A candidata favorita do mercado era Patricia Bullrich, do Juntos por el Cambio, que ficou em terceiro lugar, portanto fora do segundo turno. Uma promessa de Massa que todos sabem que não será cumprida - ter superávit fiscal de 1% em 2024 - acabou contribuindo para a má reação.