Como vice-presidente relegado a papel decorativo por Jair Bolsonaro, Hamilton Mourão tinha uma responsabilidade no governo anterior: coordenava o Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL).
O "legal" do nome não se refere ao fato de a floresta ser bacana, nem à necessidade de mantê-la dentro da lei, apenas delimita o território à região de atuação da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam).
Nesse papel, Mourão costumava ser cobrado pelo avanço sem freio do desmatamento. Em uma dessas ocasiões, disse que era "culpado" pela situação. Não foi exatamente uma admissão de responsabilidade, mas isso será cobrado do recém-empossado senador pelo Rio Grande do Sul.
Em entrevista à Rádio Gaúcha, Mourão voltou a tratar com ironia - os mais críticos chamariam de cinismo - suas responsabilidades nos cargos. Afirmou que parte dos yanomami apoia o garimpo porque "índio quer celular, índio quer caminhonete". O senador ainda não ajustou sua linguagem para evitar o termo que, para os indígenas, é quase tão pesado quanto "negro" para as pessoas de pele escura nos Estados Unidos.
Celular e caminhonete podem ser importantes para os yanomami. Antes de assegurar esse acesso, porém, autoridades - especialmente as que coordenam o Conselho Nacional da Amazônia Legal - têm o dever de verificar se conseguem obter alimentos e remédios. E se existe liberdade de poder escolher se querem - ou não - celular e caminhonete. Sem comida, assistência médica e liberdade de escolha, não há se pode empregar o verbo "querer".
A coluna não vai se aprofundar nos relatos de abuso alcoólico e violência sexual contra os yanomami apenas por não ter lugar de fala no tema. Mas Mourão certamente conhece esses relatos. Suas declarações são ainda mais espantosas diante de uma simples constatação, que toda autoridade responsável no Brasil deve ter mente: garimpo em área indígena é proibido. Não importa se rende celular e caminhonete. Simplesmente não deveria estar ali.
Também era tarefa do coordenador do Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL) impedir que atividades ilegais ocorressem no território legal. Agora que todos sabemos mais sobre o avanço desenfreado do garimpo criminoso, Mourão é um dos muitos que serão cobrados sobre como e por que deixaram isso acontecer. Terá de responder sem ironia. Nem cinismo.