A tragédia dos yanomamis famintos e doentes não é só fruto de descaso. Rende ganhos: o abandono facilita a exploração dos indígenas pelo garimpo ilegal, que hoje envolve cerca de 20 mil pessoas. Doutora em Energia pela USP, com permanência na Faculdade de Economia da Goethe University Frankfurt, Larissa Rodrigues é uma das autoras do estudo sobre o alcance dessa atividade (leia a íntegra clicando aqui) que subsidia o novo governo na tentativa de frear o crime na Amazônia. Líder de portfólio do Instituto Escolhas, organização sem fins econômicos que propõe soluções em temas como o combate ao desmatamento, mineração e energia, concluiu que cerca de metade do ouro produzido no Brasil tem alguma irregularidade. Como quase todo mineral legal é exportado, alerta Larissa, comprar uma simples aliança no país embute o risco de que envolva escravização de pessoas, desmatamento e destruição de rios. O Escolhas e o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) - que representa a produção legal - entraram com representação na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) pedindo investigação de empresas reguladas pelo "xerife do mercado" já com sólidos indícios de relações com a atividade ilegal.
Quando o Escolhas começou a estudar o garimpo?
No final de 2019, com mais força a partir de 2020. Não foi aí que começou o problema, porque o garimpo existe há décadas no Brasil, mas não na proporção que se viu nos últimos anos.
O que mudou?
Com a pandemia, o preço do ouro disparou, por ser reserva de valor. Isso criou estímulo para novas explorações. Além disso, o governo Bolsonaro tinha uma agenda pró-garimpo na Amazônia. O ex-presidente fez discursos para garimpeiros, recebeu no Planalto e tomou medidas. No início de 2020, mandou o projeto de lei 191, para liberar a mineração em terra indígena. Ainda está em tramitação no Congresso. Com isso, deu um sinal forte de que quem estivesse trabalhando, de que teria operações legalizadas. No Brasil, a área de mineração industrial sempre foi maior do que a de garimpos. Agora inverteu. O Brasil virou um país garimpeiro. Em 10 anos, a área de garimpo em terra indígena aumentou 600%, concentrado a partir de 2018, 2019.
Entre 2015 e 2020, o Brasil comercializou 229 toneladas de ouro com indícios de ilegalidade. Isso é quase a metade de todo o ouro produzido e exportado pelo país.
O estudo menciona que metade do ouro produzido no Brasil é ilegal, é isso mesmo?
O que se consegue ver pelos estudos é que um pouco mais da metade tem indícios de ilegalidade, com produção concentrada na Amazônia. Entre 2015 e 2020, o Brasil comercializou 229 toneladas de ouro com irregularidades. É quase a metade de todo o ouro produzido e exportado pelo país. Em 2021, de quando temos dados mais recentes, o Brasil exportou 104 toneladas de ouro. Dessas, houve indícios de irregularidade em 53 toneladas.
Como é um mercado ilegal, é difícil de rastrear. Como vocês fizeram?
É bem difícil, mesmo. Fizemos um grande esforço de pesquisa. Na primeira relação, de 2015 a 2020, examinamos cerca de 40 mil registros de comercialização de ouro, cruzando com bases de dados oficiais, para tentar encontrar fraudes. Como é difícil, essa estimativa de um pouco mais da metade provavelmente seja subestimada. Tem contrabando que a gente não consegue nem identificar. Parte do ouro comercializado vem de áreas, em tese, autorizadas. Mas também retiram de onde não poderia estar funcionando, pega do lado e bota pra dentro de sua licença.
Como se sabe disso?
Quando olha imagem de satélite, se vê que nada está acontecendo em áreas autorizadas. Existem autorizações fantasma de lavra. Em documentos de venda de ouro, muitas vezes nem se identifica a área. O resultado é que, infelizmente, o Brasil oficialmente exporta mais ouro do que produz. Tem uma quantia que nem passa por fraude, vai direto para exportação. As fraudes, quando se vê, são grosseiras. Comprovam total descontrole sobre a cadeia do ouro no Brasil.
Entre 2015 e 2020, o Brasil comercializou 229 toneladas de ouro com indícios de ilegalidade. Isso é quase a metade de todo o ouro produzido e exportado pelo país.
São "só" irregularidades ou é ouro manchado de sangue?
É manchado de sangue indígena, de desmatamento e de contaminação por mercúrio. Atuam em áreas conservação, com impacto no ambiente. E mesmo que não estejam dentro da mata, contaminam os rios da Amazônia com mercúrio. Por isso, o risco de comprar ouro manchado de sangue indígena é enorme. É trágico.
O Escolhas é parte de uma ação na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para responsabilizar as empresas que ganham com isso. Qual é a expectativa?
Encaminhamos uma representação, que tem apoio do Ibram (Instituto Brasileiro de Mineração), com abertura de investigação para que essas empresas se responsabilizem pelo que estão adquirindo. Quando o garimpeiro vende ouro, só precisa preencher um formulário em papel. É uma autodeclaração feita de boa-fé, autorizada por lei. Essa lei garante proteção a essas empresas, mas é preciso investigar para ver se não estão comprando ouro ilegal. São DTVMs (distribuidoras de títulos mobiliários), mas fazem parte da cadeia do garimpo, os donos têm ligação com refinadores.
Ao menos, agora as pessoas estão vendo a situação horrorosa dos yanomamis. Em dezembro, ninguém enxergava.
Com a mudança de governo, já houve alguma diferença?
No primeiro dia, foi suspenso o decreto presidencial 10.966, de fevereiro de 2022, que criava um programa de incentivo para o garimpo na Amazônia. Na época, falamos com o Ministério de Minas e Energia, mas como era um decreto de Bolsonaro, não teve muito eco. Levamos à equipe de transição e, no primeiro dia de governo, foi suspenso. Foi uma sinalização extremamente importante, assim como o presidente ter ido a Roraima ver os yanomamis. Nesta semana, o ministro Flavio Dino (Justiça), que examinou nosso relatório, fez pedido à AGU (Advocacia Geral da União) para suspender a declaração de boa fé, que estimula o crime e novas invasões de terra indígena na Amazônia. Ao menos, agora as pessoas estão vendo a situação horrorosa dos yanomamis. Em dezembro, ninguém enxergava.
A estratégia é ver quem está ganhando dinheiro com isso para frear o crime?
Exatamente. O que tem de fazer hoje é tirar as operações de garimpo de dentro das terras indígenas e de áreas de preservação. Para isso, é preciso estrangular esse tipo de atividade. Se não, tira o garimpeiro em um dia, no seguinte ele volta. Se estrangular, facilita alcançar as pessoas que cometem crimes na Amazônia e não são punidas. É preciso acabar com a a autodeclaração de boa-fé, usar notas fiscais eletrônicas para a Receita monitorar mais de perto, criar sistemas digitais e seguros para monitorar essas transações.
Essa entrevista é parte da seção ESG na Prática, que parte dos princípios de que atividades econômicas sem responsabilidade social e ambiental estão se tornando obsoletas e inovação não é só tecnologia, mas também diversidade e inclusão. Portanto, é tão importante mostrar exemplos positivos quanto expor o oposto, com discussão de soluções. Sugestões podem ser enviadas para camila.silva@zerohora.com.br e marta.sfredo@zerohora.com.br.