Há um ano, a coluna fez questão que começar 2022 ouvindo um dos mais reconhecidos cientistas brasileiros, o engenheiro e meteorologista Carlos Afonso Nobre. A voz que se erguia para apontar que considera o maior desafio da humanidade desde o surgimento do homo sapiens - frear a mudança climática - agora abraça o otimismo de início de ano com perspectivas de freio também no desmatamento e aos crimes ambientais na Amazônia. Entre uma entrevista e outra, esse engenheiro eletrônico formado pelo Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) e doutorado em meteorologia no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT na sigla em inglês), recebeu a Medalha de Oficial da mais Excelente Ordem do Império Britânico, uma das últimas honrarias concedidas pela rainha Elizabeth II. Aposentado do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), atualmente é pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP e integrante da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN).
Como vê tantos discursos sobre proteção ao ambiente na última semana?
Com bastante otimismo, não só porque houve manifestações durante a campanha, repetidas agora com a nomeação de excelentes ministros para a área, todos com discurso muito coeso, de o governo federal atuar de maneira eficaz para combater o crime e o desmatamento. Isso leva a mudança de expectativa. Uma eventual reeleição do governo anterior levaria pessimismo a toda a comunidade científica, porque era anticiência. Agora, temos chance de parar o crime. Não vai ser fácil, mas ao menos o ano começa com otimismo. Outro sinal positivo que vai além do discurso é que, há 20 anos, quando Lula foi eleito, com a ministra Marina, entre 2003 e 2004 foram adotadas medidas muito eficazes. Solicitou ao Inpe, sei porque eu estava lá, que se produzisse análise diária de desmatamento, não só semanal. Foi muito importante para as políticas que começaram a ter efeito, e o desmatamento caiu 83%.
Agora, não vai dar para esperar dois anos, vai?
Não, temos um enorme desafio. O desmatamento no sul da Amazônia, que é a região mais afetada, explode a partir de abril/maio. Agora ainda é época chuvosa, por isso o pior vem em seguida, depois entre julho e agosto vêm as queimadas. Não há tempo a perder. Hoje temos, infelizmente, um enfraquecimento da política ambiental. da efetividade e da eficácia da fiscalização do Ibama. Houve um desmonte da política ambiental no Brasil. Também houve um sinal verde para o crime ambiental no discurso do ex-presidente e o do ex-ministro do meio ambiente. Quem atua de forma irregular se sentiu totalmente protegido a partir de fevereiro de 2019, quando o então presidente determinou que os equipamentos apreendidos em grilagem, desmatamento ou mineração ilegal não podiam ser destruído. A decisão de destruir foi tomada porque, antes, essas máquinas acabavam vendidas em leilão por preço muito baixo e ia parar nas mesmas mãos.
Todas as avaliações apontam que mais de 90% das atividades na Amazônia nos últimos quatro anos são ilegais.
Qual é o tamanho do desafio de combater o crime instalado na Amazônia?
Todas as avaliações apontam que mais de 90% das atividades na Amazônia nos últimos quatro anos são ilegais. É um desafio semelhante ao de 2003/2004, embora o desmatamento não tenha chegado ao mesmo nível.
Na época era pior?
Sim, chegou a mais de 27 mil quilômetros quadrados nesses dois anos. No ano passado, ficou por volta de 13 mil quilômetros quadrados. Na época, era mais desmatamento da indústria de terras, cortava a floresta em áreas públicas e tentava vender. Infelizmente, muito desse crime passou a ser comandado pelo crime organizado, inclusive pelo PCC e outras facções, até mesmo ligado a narcotráfico internacional. Será preciso combater o crime ambiental e, ao mesmo tempo, atacar os pilares desse crise organizado, o que não é nada trivial. Mas já houve sucesso lá atrás, o que mostra que é possível. Com o Deter (Sistema de Detecção de Desmatamentos em Tempo Real) do Inpe, qualquer ato ilegal é capturado pelo satélite. Quando alguém começa a construir uma pista de pouso clandestina, para fazer mineração ilegal, o sistema captura nos primeiros dias. É só querer. Vai precisar quase uma guerra, mas temos as armas certas. Falta só o combate pelo sistema público, dos agentes de fiscalização, das polícias. Acredito em uma ação muito eficaz. A Marina criou uma secretaria extraordinária para combater crime ambiental e disse que, quando zerarmos o desmatamento, não precisará mais existir.
Falar em guerra assusta, é isso mesmo?
Tem dois aspectos. O sistema Deter fornece a Ibama, Polícia Federal e órgãos estaduais dados diários. Não parou. A fiscalização pode rapidamente se deslocar e parar o desmatamento. É bom lembrar que as pessoas, no campo, são apenas empregados com baixos salários cumprindo ordens. É uma ação que terá de ser gigantesca, porque há dezenas de milhares de garimpeiros ilegal. O Ibama aponta mais de 20 mil só em território ianomâmi. O sistema Deter do Inpe enviou centenas de avisos diários por dois meses porque estava ocorrendo invasão de uma floresta nacional, para grilagem em 3 mil hectares. O Ibama nunca mandou um fiscal, e os criminosos ficaram livres. Essa era a política do governo anterior: incentivar a posse de terra, depois levar para o Congresso e fazer 'regularização fundiária'. Isso é legalizar o crime.
A restauração da Amazônia e de outros biomas, como cerrado, mata atlântica, pampa, dá ao Brasil o potencial de ser o país com maior mercado de créditos de carbono associados a zerar desmatamento.
Há esse enorme desafio, mas também uma oportunidade gigante, que é o mercado de créditos de carbono. Agora vai?
O acordo climático ainda não bateu o martelo do artigo 6 do Acordo de Paris, que é o mercado global de carbono, com métricas rigorosas. É provável que ocorra na próxima COP, ou na COP 30, que o presidente Lula quer trazer para a Amazônia brasileira. É importante que saia a regulamentação completa nos próximos anos, porque gera mais segurança de que o mercado é rigoroso, que não vai ser falso ou só greenwashing (maquiagem verde). Existem grandes setores que não conseguem reduzir rapidamente o uso de energia fóssil, como aviação e cimento, entre outras. Esse mercado permite o chamado 'net zero', que compensa emissões com a compra crédito de setores que retiram gases de efeito estufa.
O que pode representar para o Brasil?
A restauração da Amazônia, mas também de outros biomas, como cerrado, mata atlântica, pampa, dá ao Brasil o potencial de ser o país com maior mercado de créditos de carbono associado a zerar desmatamento. Estamos falando em dezenas de bilhões de dólares. É preciso pressionar para atingir mais rapidamente esse objetivo do Acordo de Paris, que anda em velocidade lenta e preocupante. A Guiana foi o primeiro país que conseguiu aprovar créditos no sistema Arquitetura para Transações de REDD+ (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal, em que o "+" inclui outros esforços, como gestão florestal sustentável, conservação e aumento de área), do qual faço parte. Mostrou que teve maior área de floresta entre 2016 e 2020 do que entre 2011 e 2016, validou cerca de US$ 700 milhões. Três Estados já se credenciam, Amapá, Tocantins e Maranhão. Imagina isso no Pará, que tem a maior área desmatada, mas está trabalhando sério e em poucos anos se credencia. É 12 vezes maior do que a Guiana.
O sistema integrado lavoura, pecuária e floresta ajuda a recuperar os nutrientes do solo em sistema de rotação. É muito mais produtivo e lucrativo.
Outra questão que é, ao mesmo tempo, desafio e oportunidade, é a recuperação de áreas degradadas?
O Brasil tem 1,6 milhão de quilômetros quadrados de pastagem. Com a Índia, é um dos países que têm a maior área de pastagem. Existem áreas degradadas, de baixíssima produtividade, com 1,3 cabeça por hectare, quando mesmo na pecuária extensiva, mas de alta produtividade, há até cinco cabeças por hectare. O solo está degradado, perdeu fertilização, foi compactado pelo pelo dos bois, tem drenagem ruim, não armazena água. O presidente falou em 300 mil quilômetros quadrados que podem ser transformados em produção com restauração florestal, que tem gigantesco valor no mercado de carbono. O sistema integrado lavoura, pecuária e floresta ajuda a recuperar os nutrientes do solo em sistema de rotação. É muito mais produtivo e lucrativo. O Brasil pode continuar a ter grande produção de alimentos, inclusive a pecuária - não para mim, que não como carne há 15 anos, mas respeito totalmente a cultura do consumo de proteína animal. Essa pecuária é muito mais sustentável. Mas tudo isso não pode esperar o próximo ano. Tem de atacar o crime organizado agora, há meses decisivos à frente.