Durante o governo que terminou com fuga para Miami, o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega foi um crítico. inclusive. do ministro da Economia, Paulo Guedes, a quem chamou de "liberal de araque". Um ano antes da eleição, havia dito à coluna que, se a disputa fosse entre Lula e Bolsonaro, o mercado preferiria Lula. Acreditava ser uma escolha entre o “pragmatismo já testado” em mandatos na primeira década de 2000 ao “desastre” do último ocupante do cargo. Agora, diz estar "preocupado" com os sinais dados pelo novo governo durante o período de transição. Diz que ainda se pode dar "o benefício da dúvida", mas faz um alerta:
— Sem arcabouço fiscal crível, o governo fracassa no campo econômico e social, porque gera queda de confiança, provoca depreciação cambial e inflação, que prejudica os mais pobres.
Qual sua expectativa sobre o novo governo?
Estou preocupado. Ao contrário do que era uma grande expectativa entre analistas, economistas e mercado financeiro, de que Lula reproduziria o primeiro mandato, cada vez mais se parece com o segundo ou até com o período Dilma. Ainda dá para conceder o benefício da dúvida, mas o que se tem visto é muito preocupante. Algumas coisas são incompreensíveis, como a rejeição peremptória à privatização. Mostra a dificuldade que Lula e o o PT têm de se atualizar, acompanhar mudanças, transformações. Sei que boa parte do Brasil pensa como ele, mas quem vai ser presidente pela terceira vez já deveria ter abandonado alguns conceitos. Estatal é passado, inclusive no Brasil. A civilização tem cem séculos, e as estatais só apareceram nos dois últimos. O Estado não nasceu para administrar atividades que são típicas do setor privado, a não ser em condições excepcionais. O setor privado tende a ser mais eficiente na gestão de empresas, o que aumenta a produtividade e resulta em crescimento econômico.
Tenho esperança, ainda, que, diante dos desafios que vai enfrentar, o presidente reflita melhor sobre questões econômicas.
Considera o veto à privatização absoluto?
Foi realmente surpreendente. Tenho esperança, ainda, que, diante dos desafios que vai enfrentar, o presidente reflita melhor sobre questões econômicas. Será mais bem-sucedido se privatizar.
O que mais preocupa?
A rejeição ao teto de gastos, que realmente precisa de aperfeiçoamento. Mas acredito que o PT vai acabar se convencendo de que , sem teto, não tem âncora fiscal crível. A de meta de dívida é frágil, o mercado não vai comprar. O teto, o governo controla. A dívida pode ser inflada por aumento da taxa Selic ou por crise mundial. Aí o real se desvaloriza, vira calamidade. Meta de dívida não funcionou nem na Europa. Os países que se candidataram a fazer parte do euro tiveram de observar meta de dívida pública de 60% do PIB, e nem a Alemanha conseguiu cumprir todas as vezes. O que precisa fazer não é acabar, mas reformular o teto com base nessa experiência de cinco anos.
Era preciso dar um basta, fazer um freio de arrumação, induzir a sociedade e o sistema político a rediscutir prioridades. O país não pode ser bem-sucedido com 95% dos gastos federais com destinação obrigatória. Na maior parte dos países, é 50%.
O novo governo quer uma alternativa, e até o ex-ministro Paulo Guedes estudava outro mecanismo.
Seria importante manter a lógica do teto, em que o limite é despesa, não importa ter receita. O Brasil gasta em programas sociais 25% do PIB, tanto quanto a Alemanha. E alguns que não se justificam. A Constituição de 1988 estipulou despesas que começaram a crescer muito acima da expansão da economia. Primeiro, a inflação financiou, porque corroía os benefícios. Depois do Plano Real, foram financiadas por aumento real da carga tributária, mais tarde, por aumento da dívida. Era preciso um freio de arrumação, para induzir a sociedade e o sistema político a rediscutir prioridades. O país não pode ser bem-sucedido com 95% dos gastos federais com destinação obrigatória. Na maior parte dos países, é 50%.
Como um ex-ministro da Fazenda vê Haddad no cargo?
Minha dúvida não é em relação ao Haddad, que tem mestrado em Economia em uma das melhores universidades do país, a USP. Mas não adianta inventar regra que não funciona. O teto foi o fator predominante na queda da taxa de juro para para 2%.
Sem arcabouço fiscal crível, o governo fracassa no campo econômico e social, porque gera queda de confiança, provoca depreciação cambial e inflação, que prejudica os mais pobres.
A recessão não teve peso grande para baixar o juro?
Sim, mas o teto permitiu e foi decisivo durante todo o período. Depois, voltou a subir por razões políticas, eleitoreiras, porque o gasto voltou a aumentar com Guedes e Bolsonaro. Então, antes de dizer que não funciona, precisariam estudar mais.
O governo terá direito à famosa trégua de cem dias?
Sim, mas tem de vir algum sinal para resolver a questão fiscal. Sem arcabouço fiscal crível, o governo fracassa no campo econômico e social, porque gera queda de confiança, gera depreciação cambial e inflação, que prejudica os mais pobres. Sem contar que destrói capital político. Aí, vai ser um governo sem ação pelo resto do período.
As PPPs podem ser a forma de continuar a ter investimento no Brasil. No orçamento de 2023, mesmo com a PEC, o investimento está baixo, entre R$ 50 bilhões a R$ 60 bilhões.
É inevitável?
Não, a expectativa é de que Lula pode surpreender, na medida em que se assenhorar dos desafios. E é preciso retomar a capacidade do Brasil de crescer. Isso se faz com aumento da produtividade, com reformas que melhorem o ambiente de negócios e reduzam riscos, não com desenvolvimentismo retrógrado.
Quando Haddad fala muito em fazer PPPs e concessões, com ajuda de Gabriel Galípolo, é levado a sério?
Sim tem procedência. O Galípolo, quando trabalhou no Fator, trabalhou em vários casos de PPP. O problema é que a formulação de política econômica está com Guilherme Mello, que escreveu barbaridades sobre o governo Dilma. Chegou a dizer que o fracasso se deve a adoção de políticas neoliberais do FHC. As PPPs podem ser a forma de continuar a ter investimento no Brasil. Se olhar o orçamento de 2023, mesmo considerando o acréscimo da PEC que o relator fez, o investimento está baixo, entre R$ 50 bilhões a R$ 60 bilhões. É menos de 1% do PIB.
O BNDES tende a perder relevância como fonte de captação de recursos de longo prazo. Pode financiar atividades não atrativas, estruturar projetos.
Não é uma contradição dizer que o investimento é baixo se a PEC foi considerada muito alta?
A PEC é um desastre, mas mesmo esse desastre tenha produzido algum aumento do investimento, é pouco. O Brasil vai ter, nas próximas décadas e talvez para sempre, uma situação em que o investimento em transporte, comunicação, energia, saneamento, terá de vir para o setor privado. O setor público vai investir em áreas que não são atrativas para o capital privado, como estradas vicinais, aeroportos que não são viáveis. Uma realidade nova no Brasil é o crédito de longo prazo privado, via mercado de capitais. Grandes empresas passaram a se financiar pelo mercado de capitais, com debêntures. Essa relação entre privados é considerada mais fluida, mais rápida, mais eficaz. O BNDES tende a perder relevância como fonte de captação de recursos de longo prazo. Pode financiar atividades não atrativas, estruturar projetos.
O BNDES acabou de assinar um contrato robusto com uma empresa de saneamento.
Haverá casos em que o BNDES, pela relevância do projeto, terá de entrar. Mas não com crédito subsidiado. Para prazos mais longos, entre 30 e 40 anos, ainda terá um papel.
Mas é verdade, se não fosse o calote nos precatórios, não teria havido superávit. O Brasil é um país estruturalmente deficitário.
Há muita cobrança, correta, de maquiagem nas contas públicas de outros governos, mas o último vai terminar com um suposto superávit, mas deixando de pagar precatórios, para citar só uma grande pendência?
O superávit se deve a duas surpresas: a economia cresceu mais do que se esperava e a arrecadação subiu com preços de commodities em alta. em razão. Mas é verdade, se não fosse o calote nos precatórios, não teria havido superávit. O Brasil é um país estruturalmente deficitário. Para estabilizar a dívida, tem de gerar superávit primário de 1,5% a 2%. Quando tem déficit, a dívida pública vai crescendo. Quando surgiu a PEC 113/114, eu cunhei a frase, que era a PEC do Calote. Acabou pegando. O governo (que acaba de terminar) adiou o pagamento de R$ 60 bilhões. Tenho defendido que os precatórios têm de sair do teto. É uma despesa absolutamente imprevisível e não controlável. Isso sim é contraditório. Liberal que dá calote é liberal de araque.