Atual diretor do Insper, Marcos Lisboa tem doutorado em Economia pela Universidade da Pensilvânia e atuou como professor assistente no Departamento de Economia da Universidade de Stanford. Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda do governo Lula entre 2003 e 2005. Depois, foi diretor-executivo e vice-presidente do Itaú Unibanco, de 2006 a 2009. Hoje, é uma das vozes mais ouvidas no debate econômico, com severas críticas à condução da equipe de transição do futuro governo. O foco na sustentabilidade das contas públicas não faz Lisboa desprezar a responsabilidade social. Ao contrário: é em nome das camadas de renda mais baixa, explica, que é preciso calibrar gastos. Em vez de cortar programas sociais, sua proposta é tributar iguais como iguais - o que, sustenta, não ocorre no Brasil, onde as pessoas que está entre os 1% mais ricos se consideram de classe média.
Responsabilidade fiscal e social são antagônicas?
Não. O descuido da sustentabilidade das contas públicas prejudica imensamente a população. O descontrole vira juro mais alto, menos investimento, mais volatilidade do câmbio e inflação. Minha geração viveu isso nos anos 1980. Um descuido severo gerou volatilidade, baixo crescimento e inflação alta. Isso desestrutura a vida das pessas. A dificuldade atual é que tanto o atual quanto o novo governo não querem enfrentar os problemas do país. Governar é fazer escolhas. Se quer expandir benefícios, precisa tributar outras camadas, reduzir subsídios à indústria. Se quer mais de um lado, tem de tributar o outro. O foco no social é bem-vindo, mas não há mágica de distribuir de um lado e não cobrar mais de ninguém.
Isso quer dizer que a reação não vem só do mercado?
Tem uma fantasia de parte da elite no Brasil de achar que é classe média. São médicos, advogados, consultores econômicos com empresas, donos de negócios que acham que são pequenos, com renda de R$ 30 mil, R$ 40 mil por mês. Essa camada está entre os 1% mais ricos do país. Se ouvirem 'vamos tributar proporcionalmente os mais ricos', vão dizer 'sou classe média'. Se alguém está entre o 1%, ou o 0,1% mais rico, não é classe média. Profissionais liberais com empresas regradas pelo lucro presumido, ou empresas no Simples pagam 10% ou menos de imposto, enquanto um trabalhador formal com a mesma renda paga 27,5%.
Mexer nessas regras não tem custo político elevado?
O Judiciário do Brasil custa sete vezes mais do que em países semelhantes. Corresponde a 1,8% do PIB, enquanto na Itália, onde é caro, chega a 0,6% do PIB.
Não há solução fácil. Os servidores públicos querem aumento. O Judiciário do Brasil custa sete vezes mais do que em países semelhantes. Corresponde a 1,8% do PIB, enquanto na Itália, onde é caro, chega a 0,6% do PIB. Os salários no Judiciário são muito maiores do que em outros países, e somos bem mais pobres. Agora, as forças de segurança encaminharam um pedido para que recebam isenção de Imposto de Renda. Por que, se o servidor que trabalha em hospital paga? Nesse Brasil disfuncional, todos os grupos dizem 'somos contra a desigualdade, mas cada um diz 'sou especial, mereço tratamento diferente'. O resultado é essa situação em que estamos.
Será uma imposição do cenário difícil no Exterior em 2023?
Será um ano difícil lá fora, e temo que o que está sendo feito agora possa tornar ainda mais difícil. A proposta de despesas extra-teto de R$ 200 bilhões significa que inflação deve voltar a subir antes do que se esperava, trazendo juro maior, alta do dólar, mais volatilidade. Cada um tenta morder um pedaço maior do bolo e todo mundo fica mais pobre.
Não é pior para as camadas de menor renda, que não têm defesa da inflação?
Famílias com a mesma renda hoje pagam mais quando são formadas por assalariados do que as que têm empresa por conta própria. Um economista que tem empresa de consultoria paga menos do que um economista que trabalha em empresa.
Mais ou menos, é disfuncional para todos. Temos visto isso nos últimos anos: fica um jogo de quem consegue morder mais ou perder menos. Existe uma renda que é resultado da produção e outra que vem de benefícios do Estado, e não para as camadas de menor renda. É preciso tributar de forma homogênea quem tem a mesma renda. Famílias com a mesma renda hoje pagam mais quando são formadas por assalariados do que as que têm empresa por conta própria. Um economista que tem empresa de consultoria paga menos do que um economista que trabalha em empresa. Isso ocorre porque existe um favor do Estado. Que ainda dá proteção a quem tem concorrência no Exterior, subsídios em crédito público, favor tributário. Aí está a distorção. Tem um país que trabalha para ganhar sua renda e outro que a obtém de subsídios, proteções. É dinheiro que sai de algum lugar. E sai do Brasil que trabalha e sustenta essa parte da elite.
Uma reforma tributária resolve essas distorções?
Temos a reforma da tributação sobre o consumo prevista na PEC 45, essencial porque as regras no Brasil são muito diferentes do resto do mundo. A forma de cobrança de impostos sobre o consumo é disfuncional, atrapalha muito o crescimento. E temos outra necessidade, a reforma da tributação sobre a renda, muito mais complicada. Tem rico que paga pouco e rico que paga muito. A renda média no Brasil é de R$ 3,5 mil, não R$ 35 mil, como recebe a elite dos servidores públicos. Se alguém ganha mais de R$ 30 mil no Brasil, já está entre o 1% mais rico. Se ganha mais de R$ 100 mil, está entre o 0,1% mais rico. Mas a sociedade reage como se fossem todos da classe média. O Brasil é um país pobre. A melhor maneira de superar a pobreza é garantir educação de qualidade e adotar políticas públicas de boa qualidade. Os países do mundo ocidental superaram a pobreza dessa forma, não com favores oficiais. E com crescimento estável ao longo de muitos anos. Aí, cada geração fica melhor do que a anterior. Isso ocorreu no século 20 e tem ocorrido mais recentemente no Leste Europeu, na Ásia. É inacreditável a tributação sobre o consumo que o Brasil inventou. É tecnicamente muito errada e está fadada a cair. O IVA (Imposto sobre Valor Agregado) é adotado em 160 países. E é simples: olha a nota fiscal, por quanto comprou, por quanto vendeu, e a alíquota é uniforme. Evita que empresas optem por uma tecnologia mais ineficiente para produzir. Se a melhor tecnologia tem carga tributária mais alta, prefere a que paga menos imposto. É o oportunismo habitual.
Se uma PEC de R$ 200 bilhões vai aumentar a inflação, existe um valor aceitável?
O que vejo no Brasil é que a agenda social vem na frente e, atrás, vem um caminhão de meia-entrada para grupos de interesse. Foi o que ocorreu com a PEC Kamikaze e a PEC dos Precatórios.
O que vejo no Brasil é que a agenda social vem na frente e, atrás, vem um caminhão de meia-entrada para grupos de interesse. Foi o que ocorreu com a PEC Kamikaze e a PEC dos Precatórios. Vai abrir um espaço fiscal que não se sabe como será usado. A PEC dos Precatórios foi assim, direita e esquerda votaram juntas. Não tem diferença ideológica no país da meia-entrada. Foram aprovados benefícios para caminhoneiros, taxistas, outros grupos de interesse. Isso é capturar o Estado para interesses paroquiais.
O conjunto de bombas fiscais não justificam parte dos pedidos?
Sim, e foi feito com apoio dos deputados da base do atual governo, com apoio da esquerda. Que também aprovou a emenda da capitalização da Eletrobras, que obriga a construir gasodutos que saem do Rio de Janeiro, vão para o Norte e o Nordeste abastecer termelétricas que gerarão energia para São Paulo. É um custo para o país que vai gerar benefícios a construtores de gasodutos. Agora se fala em "herança maldita", mas a esquerda apoiou boa parte dessa herança.
Como vê o nome de Fernando Haddad para o Ministério da Fazenda?
O primeiro governo Lula se beneficiou das reformas do governo FHC. Lula 2 se beneficiou de reformas de seu primeiro mandato. O governo Dilma enfrentou a conta de decisões do Lula 2, como a Sete Brasil e a construção de refinarias.
Não discuto nomes, em geral. Mas há um desafio para países em que se criou o consenso de que o papel da política é distribuir riqueza: todos se acham vítimas, ninguém é responsável por nada. O Brasil é um país que vive um processo cíclico muito peculiar. Quando a crise chega muito severa, como na década de 1980, ou entre 2015 e 2016, o país aceita fazer reformas duras, como reduzir o crédito subsidiado para o setor privado. Quando se restabelece alguma normalidade, a captura dos recursos públicos volta com força. No Congresso, tramitam cerca de quatro dezenas de medidas para proteger interesses privados. Estamos contratando uma crise para os próximos anos. O primeiro governo Lula se beneficiou das reformas do governo FHC. Lula 2 se beneficiou de reformas de seu primeiro mandato. O governo Dilma enfrentou a conta de decisões do Lula 2, como a Sete Brasil e a construção de refinarias. Há uma defasagem entre o que se faz na política pública. Em uma frase de conselheiro Acácio (personagem do livro O Primo Basílio, de Eça de Queiroz, que dizia obviedades com pompa), a consequência vem depois. É isso que o governo de transição está ameaçando voltar a fazer.
Não há uma emergência social, em parte decorrente da pandemia, que exige cuidado?
O que está sendo oferecido hoje é, financeiramente, muito mais do que o Brasil já ofereceu. O problema é que o atual programa, o Auxílio Brasil, é mal desenhado, induzindo até a divisão das famílias (como não há condicionantes, o Auxílio Brasil é pago por pessoa, não por família). Se é para fazer, tem de fazer direito e, para bancar, é preciso cortar benefícios do outro lado. Não dar isenção para setores. Querem discutir grandes teses, mas não a solução.
Diante de suas críticas, nem deveria perguntar, mas como houve especulações, lá vai: você participaria do futuro governo?
Não, não existe isso.