Embora houvesse especulações nesse sentido, a coluna precisa confessar que não apostava muito neste desfecho: a criticada PEC da Transição do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, vai mesmo socorrer o final de governo de seu opositor, Jair Bolsonaro. A zebra - no sentido de reviravolta - não desfila só nos campos do Catar, apareceu também no Congresso
A solução para o apagão nas contas do atual governo, que ameaça deixar hospitais, universidades e até a Polícia Federal sem operar, vai usar o mesmo mecanismo que elevou a "licença para gastar" de R$ 175 bilhões para R$ 198 bilhões: o famoso "excesso de arrecadação" (só entre aspas, mesmo).
O texto apresentado pelo relator da PEC, senador Alexandre Silveira (PSD-MG), reduz o prazo de vigência da "licença para gastar" de quatro para dois anos, autoriza gastos extras de R$ 198 bilhões, mas dentro do teto de gastos - esse, não dá para chamar de "puxadinho", é um arranha-céu fora do limite - e permite o uso do mecanismo proposto pela equipe de transição para resgatar o governo Bolsonaro de um final desastroso, com risco de apagão generalizado. Embora distante do valor, seguiu a lógica da emenda do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE).
A "inovação" proposta na PEC da Transição era liberar um valor equivalente a até 6,5% das receitas extraordinárias para investimentos. Pela regra atual, esses recursos devem ser destinados apenas ao pagamento da dívida pública. A excepcionalidade pedida por Lula será concedida também a Bolsonaro, com o mesmo valor: R$ 23 bilhões. Neste ano, diferentemente do próximo, já se sabe que há receitas extraordinárias a usar.
O texto prevê que esse dispositivo já seja aplicado neste mês, o que libera recursos para as emendas de relator e para as despesas que ficaram descobertas pelo descontrole de gastos deste ano. Com essa canetada, o relator constrangeu aliados de Bolsonaro de pedir vista à PEC, porque atrasaria a solução urgente para o risco de apagão.
No final da tarde, a PEC foi aprovada com um corte de R$ 30 bilhões. O teto de gastos para 2023, portanto, seria ampliado em R$ 145 bilhões, e outros R$ 23 bilhões ficariam fora do teto tanto neste ano quanto no próximo. Segundo o relator, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) foi um dos parlamentares muito dedicados a viabilizar o acordo. Silveira também afirmou que o critério de não extrapolar o nível de despesas em relação ao PIB foi essencial para o corte de R$ 30 bilhões. Não há polarização que resista ao pragmatismo no Brasil.
A bolsa, que havia aberto em alta depois da queda de 2,25% do dia anterior, oscilou muito durante o dia e se firmou no positivo depois da aprovação da PEC, para fechar com alta de 0,72%. O mercado gostou da redução na "licença para gastar" e do valor do waiver fiscal dentro do teto. Na prática, faz pouca diferença, mas a decisão mantém o famoso "arcabouço fiscal" até que o novo governo defina um substituto.