Ex-ministro da Fazenda no final do governo Sarney, Maílson da Nóbrega conhece bem as pressões enfrentadas por Paulo Guedes na pasta da Economia. Embora ressalve que é difícil prever o futuro do atual ministro, avalia que "pode não durar no cargo". Na sexta-feira (2), Guedes surpreendeu ao afirmar que "fazer coisinha agradável para ganhar eleição é muito bonito, depois joga o povo no inferno". Pouco antes, havia chamado o colega do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, de "despreparado, desleal e fura-teto". Associar o Renda Cidadã à busca por reeleição de Jair Bolsonaro é consenso entre economistas, mas se é Guedes quem o faz, tem outro peso. Segundo Maílson, sempre houve no governo alas gastadoras que reclamam dos que controlam gastos. O Ministério da Economia foi recriado para eliminar esse conflito, mas não deu certo, avalia:
– Critiquei publicamente essa fusão, que já não tinha funcionado com Zelia (Cardoso de Mello, que ocupou o Ministério da Economia no governo Collor). Não havia razão para funcionar com Guedes. Leva a um acúmulo de poderes e atribuições que acabam contribuindo para a ineficiência. Quatro ministérios em um só não poderia ser funcional.
Ao dizer que furar o teto para ganhar as eleições é irresponsabilidade, o ministro Paulo Guedes aumenta as dúvidas sobre sua permanência no governo?
A frase é correta, basta lembrar o desastre de Dilma Rousseff. São as tensões de uma missão quase impossível, que é viabilizar o Renda Cidadã sem condições para tanto. Esse novo programa não tem como fechar, aliás, teria, mas as opções foram interditadas pelo principal interessado. Bolsonaro deseja os benefícios políticos e de popularidade da entrada em vigor desse novo programa sem qualquer custo em termos convencer a classe política e a a sociedade de que a saída proposta originalmente pelo ministro da Economia é a correta.
sua experiência, avalia que o ministro fica no cargo?
É difícil dizer, depende de duas coisas. Primeiro, de o presidente continuar desmoralizando o ministro em público. Segundo, de o ministro aceitar esse downgrade (rebaixamento) de seu prestígio e do apego que tenha ao cargo. Mas a percepção crescente é de que, primeiro, ele já perdeu a aura de superministro e, segundo, pode não durar no cargo. Mas é uma previsão que ninguém pode fazer com segurança. Daqui a pouco, o presidente recua, aceita a proposta de fazer compensação em programas sociais, tudo pode mudar. Mas diante dos acontecimentos dos últimos dias, inclusive a briga pública com Rogério Marinho, a percepção é de que Guedes está se enfraquecendo a olhos vistos e pode caminhar para a demissão, voluntária ou imposta. Há vários precedentes no Brasil, como a briga entre Joaquim Levy e Nelson Barbosa (no segundo mandato de Dilma), entre (Mario Henrique) Simonsen e Delfim Netto (na ditadura), Clovis Carvalho e Pedro Malan (no governo FHC). Quando se chega a esse impasse, ou espirram os dois ou um deles. Mas Bolsonaro não dá nenhuma pista de que está para tomar essa decisão Viaja toda semana com Marinho, convidou Guedes para um churrasco no sábado.
E nessa confusão toda, surge uma proposta abominável: dar calote nos créditos precatórios.
Como chegamos a essa situação?
Bolsonaro fez tudo errado. Um presidente que tem noção de liturgia do cargo discutiria esse assunto dentro dos salões do governo, onde os técnicos poderiam convencê-lo do que está errado. Como costuma agir por impulso, vendo apenas o lado eleitoral, aproveita eventos públicos para criticar a equipe econômica. As saídas apontadas pela equipe econômica são impecáveis, tanto a do abono salarial quando a do congelamento das aposentadorias. Mas Bolsonaro, em novo impulso, proíbe falar em Renda Brasil, para reabrir a discussão com outro nome. E nessa confusão toda, surge uma proposta abominável: dar calote nos créditos precatórios.
É mesmo um calote?
São obrigações do governo relativas a sentenças judiciais que reconheceram a necessidade de indenização dos prejudicados, muitos aposentados e pensionistas. Essa é apenas uma das várias modalidades de obrigações financeira do Estado, como pagamento de funcionários, de fornecedores de bens e serviços, a dívida pública. Imaginar que essa ideia maluca saiu de dentro do governo é inaceitável. Isso faz o detentor de dívida pública pensar 'posso ser o próximo'. Dizer que Estados e municípios já fazem isso é pensar que duas impropriedades dão origem a algo bem feito. É como dizer que os países ricos não têm moral para nos dar lição ambiental porque já destruíram suas florestas. É um raciocínio tolo.
Em governo sem articulação políticas e sem convicção sobre a questão fiscal, pode evoluir para um processo grave, em que o descontrole conduz o Brasil a situação de dominância fiscal.
Há saída possível para o impasse?
Só tem uma saída, compensar o gasto com corte permanente e não eventual de outras despesas. Fora disso, é o rompimento do teto, com todas as consequências que daí advirão. Vai exigir uma emenda constitucional, e não garantia de que a flexibilização se restrinja ao programa social. Vão querer para investimentos, para o Nordeste. Aí perde o controle. Em governo sem articulação políticas e sem convicção sobre a questão fiscal, pode evoluir para um processo grave, em que o descontrole conduz o Brasil a situação de dominância fiscal. Nesse caso, a insustentabilidade da dívida limita o trabalho do Banco Central de assegurar a estabilidade da moeda. Se a inflação subir, o BC fica tolhido para elevar o juro, porque a Selic mais alta agrava o endividamento. Acentua a depreciação cambial, pela queda da confiança, que leva à pressão inflacionária e pede aumento de juro. O efeito final é a volta da inflação alta e sem controle.
Haveria alternativa?
O mais racional, o melhor para o país, seria o Bolsonaro enfiar a viola no saco e admitir que Guedes estava certo quando propôs as compensações com a redução de programas sociais menos eficazes. Ou será um desastre do ponto de vista político. Seria o oposto do que quer Bolsonaro. Ele quer consolidar e ampliar a popularidade, particularmente no Nordeste, mas se houver a saída desastrosa do teto, pode colher ambiente em que a popularidade vai para o espaço. A inflação é o pior corrosivo de popularidade de governos, que o diga Dilma Rousseff.
Quando o governo saiu com essa solução de contabilidade criativa, os mercados se estressaram, porque se trata de manobra para driblar o teto.
Não há outra despesa que possa ser cortada, para não "tirar do pobre para dar ao paupérrimo"?
Quando se examina o orçamento de 2021, 95% da despesa primária (sem o pagamento da dívida) é obrigatória. Isso significa que a despesa que o governo pode controlar é de apenas R$ 92 bilhões. Para o Renda Cidadã, o custo seria de R$ 30 bilhões. Teria de cortar um terço da margem de manejo do orçamento. A expectativa quanto ao teto de gastos era de que, ao exacerbar o conflito da distribuição do orçamento, a disputa por fontes para sustentar despesa levasse a à discussão sobre a flexibilização de gastos. Isso não aconteceu, por força das corporações.
Quais as consequências?
Em parte, o resultado é o aumento do risco fiscal percebido pelos mercados. O Brasil foi o país onde a depreciação cambial foi maior, de 40% neste ano. Na Argentina, ficou abaixo de 20%. Quando o governo saiu com essa solução de contabilidade criativa, os mercados se estressaram, porque se trata de manobra para driblar o teto. O teto é a âncora que leva os mercados a acreditar que não estamos indo para uma situação de descontrole.
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